Literatura Fantástica

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quinta-feira, 6 de novembro de 2008

CAPÍTULO I

COMO MOVER UM HOMEM

– Conte-nos mais uma história. Só mais uma! – imploraram enquanto pulavam de cócoras num cerco apertado para junto da lareira e do contador de histórias. As chamas pintavam tons de crepúsculo nos seus rostos, quer de crianças, quer dos adultos.
– Não estará a ficar demasiado tarde para vós? – a figura de robe fez uma pausa e olhou pela janela. A vila era sossegada, no entanto mesmo no emergir da guerra, não muito longe daqueles bosques. Como é que aqueles agricultores simplórios pretendiam defender as suas casas, quando ignoravam o que acontecia tão perto dali? Como é que alguém podia salvaguardar-se ignorando a rapidez com que o mundo girava?
As crianças aconchegaram-se mais perto da lareira e do contador de histórias. Há cinco noites que a figura sem rosto lhes encantava a mente com histórias heróicas e fantásticos contos de heróis e traidores. De tal forma que conquistou a simpatia de todos mesmo nos seus trapos andrajosos, que continham nas pontas mais pútridas restos de estrada e de caminhos percorridos. A figura alta e esguia, de pele visível nos longos ramos dos quais nasciam mais dez, de onde brotavam botões de ouro e rubis de sangue, fazia-se acompanhar por uma semelhante presença misteriosa. Uma figura idosa, de olhos sem íris que fixavam os miúdos na primeira fila, de lábios finos e gretados, pele engelhada, não os faziam tremer mais do que algumas histórias já contadas.
– Conte-nos o que aconteceu ao Louva-a-deus, o maior ladrão de Tirail.
– Já não tinha terminado essa história? Tinha a certeza que a tinha terminado. Não?
– Oh, por favor, conte-nos de novo, senhor, na outra noite as nossas mães levaram-nos para dormir – intercedeu Esian em favor das crianças. O rapaz, gémeo de Gelliei Morgar quase nos oito anos de idade.
– As vossas mães sabem quanto descanso é que os nossos pequenos heróis necessitam. Vão, está na hora.
– Não. Só mais uma história.
– Conte-nos a história do Estranho das duas caudas.
– Hoje não! – bateu palmas e puxou o seu manto para a face a fim de criar uma sombra profunda sobre os seus olhos negros.
– Qual a razão da sua estadia nesta cidade? Conte-nos essa história. Não me recordo de ter ouvido alguma vez o seu nome desde que chegou – a voz do estalajadeiro ecoou à medida que limpava as mesas junto das escadas.
O som das canecas sobre o balcão, de contra outras, pelas mesas, denunciava a azáfama de quem servia. Enquanto do outro lado do balcão, o arrastar das cadeiras, as portadas das janelas que batiam ao sabor do vento, os passos de quem procurava na taberna algum conforto, reuniam a aldeia num lugar-comum todas as noites desde que ele chegara. A velha abandonou a sua pose fetal diante da lareira, desenrolou a espinha dorsal de tal forma que se ouviu entre o crepitar intenso da fogueira e o ranger do chão. Rodou a cabeça pelo panorama diante de si, seguia o som particular dos passos de um habitante, como um predador que fareja a sua presa à distância e esse movimento chamou à atenção do seu companheiro.
– Não parece tão velho assim ao contrário da sua avozinha... – insistiu o estalajadeiro – qual era mesmo o seu nome?
A velha debruçou-se sobre a figura esguia, os seus olhos abertos raiados de sangue de puro êxtase para murmurar algo, depois tacteou as paredes, o corrimão e desapareceu para o piso superior da taverna, só nesse instante é que o contador de histórias deu atenção ao seu inquisidor.
As crianças saltitaram em volta do estranho, cantavam o seu nome, um falso mas orgulhoso nome, que não convenceu nenhum dos adultos presentes.
– As crianças não mentem, pois não? No entanto, meus queridos heróis, chegou a hora da minha partida. Tenho que vos dizer, adeus...
As crianças expressaram uma tristeza sincera. Não haveria mais contos a partir daquela noite. Na maior parte as histórias eram difíceis de entender, no entanto aqueles serões deixariam saudades.
– Não nos deixe. Fique, oh por favor. Fique connosco – de novo Esian deixou a sua voz transparecer a angústia pela alegria roubada. Era muito mais fácil ouvir as histórias do que lê-las dos livros empoeirados que o pai os obrigava a devorar.
Ergueu a mão a pedido de silêncio.
– Antes de partir, então contar-vos-ei mais uma história.
As crianças, que já não lhe eram estranhas, sossegaram-se. Conhecia-as como se fossem livros escancarados. O seu olhar pousou diante dos gémeos à sua frente. A menina apenas tinhas desobedecido ao pai porque o irmão lhe implorara, por ela não ficaria no mesmo compartimento que aquele ser estranho, não lhe parecia humano. A palavra não poderia ter melhor aplicação no caso do contador de histórias. Estar diante dele, era a mesma sensação que sentia quando a vila era visitada pelas criaturas tenebrosas. Mas tanto para o irmão como para o amigo, Keen, o filho do estalajadeiro, o estrangeiro era o melhor contador de histórias alguma vez existente. Até para os adultos era lamentável saber que seria a última história, os serões na taberna perderiam o entusiasmo que os impulsionava a trabalhar mais rápido na ânsia de ouvir a história do novo dia.
O sorriso sinistro tornou-se o preambulo para um novo conto.
– Irei contar-vos o que me trouxe a esta cidade.
O estalajadeiro volveu a sua atenção para a multidão que se reunia diante do viajante. As crianças não eram as únicas encantadas pela sua voz.
– ...no final, poderão ver a minha face, para que se recordem de mim quando partir – as crianças aplaudiram.
– A história é sobre um rei?
– Não, minha criança – respondeu o contador de histórias ao filho do estalajadeiro – é sobre determinação!
– Determinação? – Enfatizaram as crianças mais novas.
A palavra espalhou-se pelo compartimento, muitos foram aqueles que troçaram do tema da história.
– A determinação, se não sabem, não nasce dentro de cada um de nós por si só, não... sabiam? É sempre motivada por algo que nos é exterior.
– Eu vejo a ruína sobre as nossas cabeças, de um rei que não se importa com as cidades que rodeiam a sua capital luxuosa. Ruína que está cada vez mais perto, e nem por isso a determinação aumenta nos homens – o estalajadeiro falou alto o suficiente.
– A isso, meu amigo, chama-se cobardia, mas isso é outra história, para outra noite.
A mão arrastou-se até à lareira, mergulhou-a entre as chamas revoltas que o lamberam como almas penitentes em busca de salvação. As crianças fizeram o seu papel com aclamações de espanto. Incólume, segurou uma das chamas entre os dedos e puxou-a, a luz de contra os seus trajes sujos projectou-se como uma estrela cadente. Desenhou com o seu rastro num fogo-de-artifício efémero diante dos rostos a palavra escolhida. Mais aplausos.
O contador de histórias iniciou o seu discurso.
Sobre um herói de armadura rude e espada demoníaca que completou a sua missão de conquistar a terra em honra dos tetravós, com grande glória da posse dos demónios. Por demónios não se entendia Estranhos, as criaturas que devoravam tudo à sua passagem e que incutiam medo irracional que os levava à loucura, nem criaturas etéreas, mas traduziu-se pelo povo de feições escravizadas que foram escorraçados continuamente ou feitos prisioneiros.
O eleito provinha do sul. Um herói cujo nome o vento espalhou por todos os cantos do reino e os seus feitos heróicos ficaram registados em todas as memórias de todos os seres vivos. Não só se tornou num herói como numa divindade entre os homens. Um modelo a seguir mas dificilmente possível de copiar. Um homem que reuniu um exército de homens valorosos para reconquistar a sua pátria.
O contador de histórias fez uma breve pausa e fixou a dança das chamas. Assim como muitos dos adultos pensaram sobre o qual o significado verdadeiro dessa pátria. Quando há tantas gerações ambos os povos reclamavam a Capela Branca, a capital, como a única pátria verdadeira?
– No entanto o herói deu por completa a sua tarefa quando expulsou os demónios da terra com misericórdia. Devolveu aos seus, campos e vila. Sobretudo aceitou, que diante daquela vitória, os demónios julgar-se-iam rendidos, subjugados – o estalajadeiro fixou o punho cerrado do homem à medida que a cuspia as palavras com a emoção da narrativa – naquela guerra que já durava há tantos anos, ambas as partes haviam esquecido de que lado estava a razão. O nosso herói ajudou o seu povo, escolheu por ignorar o dom que os deuses lhe haviam conferido. Guardou a espada, enterrou a armadura, ergueu, ao lado dos seus irmãos uma grandiosa muralha em volta da cidade para preservar para sempre a sua herança – não havia dúvida que falava da capital.
O estalajadeiro leu as reacções nas expressões dos adultos, naquela vila apenas existiam os ditos demónios, descendentes de um povo que escravizado. No entanto se o contador de histórias falava de um herói no trono da capital não estaria a falar de Evar, o benevolente. Aquele herói do Sul não o seu herói de forma alguma.
− E os demónios? O que fizeram os demónios?
O contador de histórias acalmou a população mais jovem com um breve som. Fez-se silêncio. O fogo estalou antes de retomar a sua história. Desta vez captara a atenção dos adultos, não só dos pais das crianças, mas de todos os que se encontravam presentes. A cidade de que falava não não estava tão longe dali como desejavam.
− A forma como elevou o seu povo naquela terra sem reclamar um trono ou uma coroa tornou-o o mais respeitado, mas os seus dias de luta não tinham terminado. Nem isso era um destino que ele pudesse controlar. Os demónios desejavam regressar àquele terreno que sempre conheceram como suas casas. Conquistariam a cidade de volta, nem que isso implicasse destruí-la. Mas os demónios sabiam que não tinham como o derrotar, o nosso herói era um homem sábio e o melhor guerreiro do mundo.
Os adultos no balcão trocaram um olhar cúmplice. Os homens que estavam mais perto da porta atiraram moedas para cima da mesa antes de abandonarem a taberna. Gesto que o contador de histórias acompanhou discretamente.
– Sucederam-se quatro batalhas, cada uma pertencente aos sucessivos herdeiros, nem de conquista e de defesa. Das quais, da primeira resultou a destruição do porto Idul, todos os navios foram afundados e os abastecimentos completamente suprimidos para norte. Da segunda resultou a submissão do povo e de todas as aldeias da periferia, os heróis abandonaram a capital em rendição por alguns anos. Os demónios tinham regressado a casa. Uma terceira batalha, a mais sangrenta, pela mesma altura da última reunião da Assembleia, pelas mãos de um rei insano, que estava preocupado com a protecção das pessoas. Cercou a cidade tal como os demónios antes de si. Conquistou as aldeias em redor mas não a capital. Morreu antes disso e foi o seu filho que continuou com as suas conquistas. No entanto a muralha nunca caiu – a pausa trouxe um sorriso desafiador aos seus lábios.
− Os demónios abandonaram a cidade de novo?
– Desta vez, demónios também tinham um herói – acenou às aclamações das crianças.
O estalajadeiro sentiu alguma comoção na sua voz. Já não tinha a certeza de que lado estaria a devoção do contador de histórias quando mencionou a presença de Evar como um herói entre a espada e a parede.
– Tiveram de lutar um contra o outro? Quem venceu? – Esian estava entusiasmado, definitivamente ouvir era muito melhor do que adormecer sobre o aborrecido livro de História. Quão sortudo poderia ser quando o seu pai, o professor da aldeia, iria testá-los naquele assunto brevemente.
– O herói – ele sorriu diante da confusão.
– Qual deles? Qual deles?
– Evar decidiu que não haveria de lutar novamente, que não deveria continuar a derramar sangue sobre aquela terra e exigiu uma discussão pacífica dos termos. Não sabendo que para Draquemar, o herói descendente do sul, já planeara a destruição de tudo. Diziam que era tão louco quanto o pai por sacrificar os seus próprios homens a experiências, tornando-os guerreiros invencíveis. Havia quem acreditasse que os Estranhos eram na verdade os seus homens. Enquanto Evar discutia com os seus cavaleiros o destino do povo da cidade, fora das muralhas o seu povo era massacrado sem qualquer tolerância. Foi quando, aconteceu algo que Evar não esperava. A população da cidade, – ergueu o indicador para enfatizar o conto – indignada pelo facto da sua decisão ter impedido o abrigo dos aldeões na última hora, deixando-os morrer nas portas da muralha, deixou de confiar nas suas decisões. Era impossível explicar-lhes que se tivesse ordenado que os portões das muralhas descessem para salvar o povo, que o seu inimigo encontraria finalmente uma oportunidade de entrar na cidade. Se o tivesse feito, neste preciso momento, todos os habitantes estariam mortos. Se houvesse uma oportunidade para negociar, talvez conseguisse, não seria cobardia, desejava, pelo menos, salvaguardar as vidas dos que habitavam a cidade cercada. Houve quem dissesse que ele havia sido amaldiçoado pelos seus próprios deuses, por recusar embainhar a espada de novo. Outros julgaram-no um déspota interessado em defender um tesouro irreal que se dizia existir no coração da cidade. Muitos boatos e histórias surgiram para explicarem a razão da sua escolha. Esses boatos dividiram a população e instaurou-se o caos dentro da cidade – a forma como o contador de histórias movia as mãos parecia-lhes possuir tal graciosidade de meia dúzia de membros.
As crianças de boca aberta seguiam-no com atenção exímia.
– Evar não era cobarde, nem havia perdido a fé nos seus deuses, nem no seu povo. Simplesmente acreditava que poderiam chegar a um consenso entre partes. O cerco à cidade trouxe fome e descontentamento, destruição e morte. Aos que conseguiam fugir, o exército inimigo recebia-os de braços abertos. Em pouco tempo os demónios tornaram-se heróis que agiram como demónios.
O contador de histórias fez uma nova pausa. Tal como todas as suas histórias as crianças necessitavam de algum tempo para entenderem a subtileza da sua semântica. As mesas da taberna estavam atentas, o estalajadeiro procurou um dos homens mais rudes, e as suas mãos disseram-lhe para não se mover.
− Por isso esta quarta batalha não foi uma luta em campo aberto, – desta vez ele não falava para as filas da frente mas para o silêncio tenebroso diante de si – nem se fez uso de armas nem as portas da cidade foram abertas ao exército conquistador. A população da cidade tomou conta do massacre. Minhas crianças, − sorriu na direcção dos gémeos, Gellie foi a única que estremeceu – esta história não tem um final feliz. Pois saibam que a população, em troca da liberdade, reuniu no castelo, no topo da cidade, a família real incluindo Evar, o mesmo povo que o aclamou como rei contra a sua vontade por crer que era o único capaz de liderar o povo, o mesmo povo que o destronou. Foi nessa torre que o massacre se deu. Dos onze cavaleiros de confiança do rei, quatro deram a sua vida imediatamente na tentativa de o salvar, os restantes fugiram com as suas próprias famílias. A cidade recebeu o exército de conquistadores de braços abertos. Draquemar entrou na cidade dos seus antepassados. Foi só quando as portas se fecharam que os gritos começaram.
A maioria das crianças estava petrificada. Olhos parados, sem expressão diante da lareira. O contador de histórias bebeu uma taça de vinho lentamente.
− Os cavaleiros conseguiram fugir? – foi a primeira vez que Keen se fez ouvir.
− Fugiram. Afastaram-se dos actos heróicos para viverem a vida de homens banais. Ignoraram o massacre da população, o assassinato do seu rei, de ambos os reis, na verdade até hoje ninguém sabe o que verdadeiramente aconteceu naquela cidade. Foi a primeira vez que os Estranhos entraram na capital para caçarem. Foi nesse instante que deixaram de existir heróis.
– Mas os cavaleiros que escaparam – iniciou Esian, Keen sacudiu a cabeça.
– A mim parece-me uma cambada de cobardes.
O contador de histórias sorriu em concordância, elevou o rosto para uma das mesas no fundo da estalagem. A forma como os homens deixaram de beber, e como a comida perdeu o paladar, deixou-o satisfeito.
– Nunca deveriam ter abandonado a cidade!
– Sim, sim, jovem mestre, de uma certa perspectiva, até devem ter parecido, no entanto salvaram as suas próprias famílias e alguns membros da família real. Ah, mas a história ainda está longe de terminar.
– Se ambos os reis morreram quem é que se tornou rei?
– Um novo rei, mas um rei que nunca foi visto como um verdadeiro herói pelos que sobreviveram. Cada lado apenas considerava o seu rei perdido como um último verdadeiro herói. Por isso o jovem rei concluiu que só havia uma forma de marcar a sua existência na História.
Teria de ser mais poderoso do que qualquer um dos reis alguma vez existentes, mais heróico, mais forte. Lembrou-se de caçar todos os homens que lhe pudessem oferecer um desafio verdadeiro. Sabem o que aconteceu?
As crianças voltaram a saltitar para junto de si.
– Os homens esconderam-se. Desistiram de lutar. Como é que o jovem rei poderia tornar-se num novo herói se não tinha inimigos valorosos para derrotar?
– Cobardes! Bem vos disse! – gritou Keen de novo.
– O jovem rei promoveu desafios, torneios, jogos, recompensas, caças, fez de tudo para atrair os heróis do passado à sua presença, mas de nada lhe valeu! – afastou as mãos num gesto significativo. – Nada! Ninguém. Até que...
O estalajadeiro olhou para a mesa do fundo, mas Soren já não estava no salão.
– Até que na sua busca descobriu o paradeiro de um, outro, seguiu as pistas por entre cidades, montanhas, rios, descobriu alguns dos homens, as suas famílias, pois desejava derrotá-los a todos um a um. Principalmente quando descobriu que entre a família de um dos ditos cobardes, – sorriu para Keen – fugira o jovem príncipe.
O estalajadeiro retirou o seu avental, não estava a gostar do caminho que aquela história tomava. A velha não voltara a descer as escadas, e apesar de isso não perturbar nem o estranho nem o público não o deixou menos sossegado. O contador de histórias viu-o contornar o balcão. Estudavam-se mutuamente. Caminhava para si, por entre as crianças, cadeiras e mesas pois desejava ver-lhe a face. Estaria a pensar que ele era um dos caçadores prémios? Talvez aquele homem temesse por algum conhecido presente na sala, se assim o era, a história não tinha sido em vão. Significava que estava num bom caminho. A campanha para desenterrar os cavaleiros do rei assassinado tinha-se tornado numa desculpa para o terror que pairava sobre as pessoas.
Sim. Convenceram-se que seria um caçador de prémios. Provavelmente um homem que fizera um pacto com os verdadeiros demónios de que ninguém desejava falar, levaria notícias ao rei de um possível herói escondido naquela vila.
Um assassino que se escondia atrás dos trapos sujos. Só um homem das artes negras poderia explicar tanto mistério e os milagres que fazia. Pegar no fogo daquela maneira. A mão estava incólume, o que explicaria isso senão bruxaria?
Enquanto o estalajadeiro o estudava, reparou que outro homem subira as escadas, a sua postura escondia uma espada.
– Quantos foram descobertos?
− Só dois, mas eram tão fracos que só serviram para deixar o rei ainda mais irritado. Por isso, durante anos, o rei esforçou-se por fazê-los sair da sua toca. Perdeu o interesse em desafiá-los com jogos, torneios. Perdeu a paciência e começou a demonstrar algum sinal de tirania. Mesmo sobre as ameaças, os aldeões não os entregaram. A sua ira abateu-se sobre o povo, mas nem assim os homens apareceram.
– Tal como eu digo, são cobardes, só cobardes!
− Encontraram o príncipe? – perguntou Gellie com alguma preocupação.
− Ainda não, mas estão à procura neste momento.
− Já chega. Crianças saiam daqui! – a voz do estalajadeiro suou com um trovão.
− Não gostou da minha história? Talvez tema que as crianças tenham pesadelos de noite.
− Não me agradou nem um pouco as mentiras que acabou de contar. Esses homens de que falou não fugiram por opção. Não admito que ensine mentiras às nossas crianças sobre os seus antepassados de forma tão vil. Temos orgulho nos que sobreviveram ao massacre e que possam ainda hoje contar os feitos dos seus verdadeiros heróis. O único cobarde que conheço é o seu rei, se deseja caçar na nossa aldeia poderá regressar e contar-lhe outra história a sua majestade. A sua cobardia em perseguir homens inocentes e as suas famílias por glória própria não merece qualquer louvor.
– Então crê que o rei que governa neste momento a Capela Branca é um cobarde?
O contador de histórias olhou o tecto.
– Sem dúvida. Se um dia o louvei por permitir que ambos os povos coexistissem na mesma cidade, porque pensei que desejasse viver em paz entre seres humanos, hoje tenho a certeza que nunca será nada aos pés de Evar.
O viajante anuiu. Quantas vezes ouviram aquele discurso por outras cidades e aldeias. Olhou de novo as escadas, podia sentir os passos do homem sobre as suas cabeças. Pelos passos contabilizados, o homem caminhara até ao quarto da velha houve silencio quando o homem segurou a maçaneta da porta do seu quarto. Os gemidos que se ouviam provinham do interior do compartimento mas não se assemelhavam a uma mulher idosa com dificuldade em andar. A estranheza aumentou quando o dueto de vozes de um homem e uma mulher proliferou pelo corredor com mais ênfase, quanto tinha a certeza que provinham do quarto da idosa. O homem hesitou e isso denunciou-se nos passos que ecoaram de uma porta para a outra. Estaria a confundir os compartimentos? Talvez a velha estivesse a dormir enquanto a juventude animava a noite. Baixou-se para espreitar pelo buraco. Não havia engano, nem havia velha alguma. O corpo da mulher que serpenteava sobre o do homem num movimento de paixão e domínio fez o homem recuar com o desejo que sentiu no seu corpo descontrolado. A velha teria de estar noutro lugar...
Estava na hora. O contador de histórias enfrentou o estalajadeiro.
– Parece que a minha história ofendeu-vos, não fazia ideia que esta aldeia pertencia aos sobreviventes, pensei que já nem houvessem sobreviventes.
– Mas a história não era sobre a determinação?
O contador de histórias voltou-se para Keen, era o mesmo que se indignara com a cobardia dos cavaleiros em fuga.
– Com razão, jovem mestre, com toda a razão. O rei ficou tão furioso, mas tão furioso pelo despeito de ser ignorado pelos seus súbditos, por se esquecerem de quem os livrou da tirania de Draquemar e da fraqueza de Evar, que fez despertar a determinação em todos os inimigos. Talvez necessitassem apenas de motivação.
– O que é que aconteceu a seguir? – indagaram à medida que o estalajadeiro recuou preocupado.
– Se ele não podia lidar directamente com esses homens então deixou a motivação suspirar nos seus ouvidos, e iniciou a caça, um por um. Procurou os heróis perdidos, esgravatou a terra à procura, por todas as aldeias, cidades, vilas e florestas – o contador de histórias fez uma pausa para olhar o tecto da taberna. Os gemidos que ecoavam na sua mente cessaram.
– Encontrou todos os heróis de que procurava? – levou algum tempo para responder, algo no andar de cima distraíra-o da história.
– Hum... Ainda não.
– Como é que ela os convenceu a voltar a lutar? A motivação, quero dizer...
– Deu-lhes um propósito, um objectivo, algo tão forte que os descontrolou, cegando-os para qualquer raciocínio humano. Algo que nenhuma força teria poder para o silenciar.
– Há alguma coisa tão poderosa assim? – Gellie voltou a estremecer.
– A história já está a prolongar-se, meninos. Vão para junto das vossas mães. Chega de tantos disparates.
– Se existe? Algo capaz de mover um homem contra a sua vontade?... há pois... – olhou as crianças e os adultos – a vingança, a raiva, como sabem, devora a mente de um homem, torna-o insano, fá-lo renascer com uma força grandiosa – abriu os braços na direcção do tecto – maior do que o poder de um deus. Para além do imaginário...
As exclamações ecoaram pelo salão.
Um grito abafado.
O homem no corredor recuperou a compostura e abeirou-se do orifício de novo, desejava vê-la, à mulher de corpo de musa e aos seus cabelos negros. A sua pele sedosa, a forma como cavalgava sobre o corpo do homem. O grito do homem, não era mais de prazer, ela abafou-o com a sua própria boca, beijava-o com a intensidade com que copulava. O êxtase no auge que o contagiou ao ponto de desejar tocar-se no fervor daquela visão.
O beijo terminou. O sangue escorreu-lhe pela cara. O intruso atirou-se sobre a madeira trancada, uma, duas, vezes até a fechadura ceder. A janela estava aberta e não havia forma da mulher ter saltado, nem tempo sequer. O corpo ensanguentado sobre a cama, sem coração.
Ali jazia Soren, herói reverenciado e nunca esquecido.
O estalajadeiro viu o homem correr pelas escadas, tropeçara horrorizado.
– Keen! Afasta-te desse homem imediatamente – disse o estalajadeiro para o filho temendo o pior. O homem vomitava em terror, enquanto balbuciava “está morto, está morto”.
– O bem tem que vencer o mal dê por onde der, não é assim, meus pequenos heróis? – o contador de histórias fingiu-se surpreendido com a protecção do estalajadeiro – Aconteceu algo, senhor?
– Afaste-se do meu filho! – murmurou em ameaça enquanto o homem gritava no chão. − Matou-o. Matou Soren, saia da minha casa. Soren era um bom homem, fez muito por nós, por todos aqueles que o seu rei abandonou com esta caça louca.
– Soren? – o contador de histórias parecia desapontado.
Respirou fundo e olhou o tecto, como se tivesse a certeza que não era aquele o seu alvo. Com sorte naquela aldeia havia mais do que um herói escondido. Contabilizou quantos havia morto com um gesto de dedos. Dos sete sobreviventes, dois morreram pela sua mão na capital, outros caçou-os, muito facilmente sucumbiam à luxúria nos braços de Sae. Mas naquela noite não era Soren quem caçava. Olhou para os gémeos diante de si. Soren não era o pai daquelas crianças, tinha a certeza disso. A sua função naquela aldeia era inspirar o pai daquelas crianças. Dar-lhe motivação para a determinação... necessária.
– Hoje estas crianças aprenderão uma lição valorosa, que jamais irão esquecer,
A mão desenhou novamente, com um rastro de fogo que encantou os presentes num feitiço como uma traça se atrai por uma luz.
A lâmina dançou e o sangue espalhou-se. Ninguém viu o movimento demasiado rápido, quase inumano.
O estalajadeiro foi demasiado lento, não se apercebeu do que acontecera, não até ver o corpo das crianças esquartejadas pelo chão. Os homens gritaram, o pânico instalou-se. Entre as vítimas existiam ainda, crianças de pé, vivas, algumas trémulas, algumas paralisadas, nem sequer sentiam as gotas quentes que lhes manchava o rosto. Os seus espíritos quebrados por terem assistido ao massacre dos seus companheiros.
O contador de histórias retirou o seu manto de lã e limpou com ele a sua espada. Não era velho, pelo contrário, a sua altivez e magreza conferia-lhe um ar imortal.
Keen estava petrificado. Os seus olhos espelhavam puro terror. Sentiu as mãos gélidas do contador de histórias no seu ombro, queimavam como fogo.
Não conseguia ouvir os gritos dos adultos.
– Veja, jovem mestre, abençoe os deuses, por o seu paizinho – apontou para o estalajadeiro – não ser um destes heróis.
O cheiro pestilento tomou conta do seu corpo. Keen recuou, não desejava sujar-se com o sangue que tornava o rosto de Gellie ainda mais pálido. Agarrou um pau e correu atrás do assassino. Não houve nenhum adulto que tentasse impedi-lo de sair, ou que fizesse alguma justiça, a criança foi a única que se lançou na direcção do inimigo sem pensar duas vezes. Atingiu-o na mão com força sem querer saber quem seria aquele homem. Enterrou a madeira rude quebrada como uma ponta de lança na mão do forasteiro.
Vangard usou o seu punho para arremessar o miúdo ao chão. Não o mataria. Deixou-o inconsciente no vão das escadas naquele fim de dia de Verão. Assim que acordasse da sesta podia continuar com a sua vida pacata como todos os outros fariam. Para aqueles que o reconheceram, ele não era só o rosto de um inimigo a relembrar, nem um caçador a mando do rei, ele não era só o rosto do inimigo do povo, como o responsável pela ruína que os abraçaria em breve, Vangard, rei e conquistador em pessoa.

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