Literatura Fantástica

Leia em português Dois reis para um trono

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domingo, 30 de agosto de 2009

Capítulo III

A mulher que via tudo


– Estiveste a jogar?

– Não, claro que não.

– Sabes que não temos tanto dinheiro assim, as economias são mínimas, e a dispensa está cada vez mais vazia, já não te importas com a terra como dantes.

– Estás a queixar-te, mulher? – Laye afagou-lhe os ombros. Era tão bonita, tão angélica, era quase um pecado gritar-lhe. Ela olharia para si com aqueles poços de negridão grandes e inocentes, enquanto imaginava em que é que tinha errado para merecer o castigo. Acreditava que merecia, de outra forma não haveria explicação para a sua crueldade. Evidente que a culpa era sua.

– Estiveste? – murmurou de novo. – Não me estou a queixar. Eu entendo. A sério que entendo. Mas eu preciso que me digas a verdade, por favor, não me mintas. É muito importante para mim, a tua palavra – o cheiro a bebida pairou até ao seu nariz com o arroto grosseiro. Ela olhou-o fundo nos seus olhos quando a abraçou e tentou beijá-la.

Se fizessem amor todos os seus problemas desapareceriam, assim ele pensava. Que a sua única necessidade era amor, físico, porque era a única forma de amar que ele conhecia e nem nisso era muito dotado.

– Vou perguntar-te mais uma vez, não espera! Não me respondas já. Quero que penses na resposta que me irás dar. Não há ninguém que me diga seja o que for, nem palavras de outras pessoas terão qualquer peso se não as do meu marido. Apenas as do meu marido. Então... agora.... Estiveste a jogar?”

Laye uniu os lábios num assobiou inaudível, um gesto que lhe era característico e colocou as cartas em cima da mesa que deixou os restantes jogadores perplexos pela segunda vez consecutiva. Abriu os braços para puxar o espólio na sua direcção.

Responde-me por favor, estiveste ou não a jogar? jovem, ela era muito jovem na altura, lamentavelmente nova, ainda nem tinha os seus dezassete anos completos. Apertou o vestido entre os dedos.

– Não.

A rapariga fechou os olhos e deixou-o sugar-lhe a pele. Chamava àquele desejo sôfrego de a devorar: beijos; Amor. Deitava-a sobre uma superfície áspera e fria para que a ternura do seu corpo macio e quente o excitasse ainda mais. Começava por beijar-lhe a face, como era bela. As mãos adivinhavam um caminho seguinte por onde a boca percorria. Já não a beijava nos lábios, isso perdeu-se com a paixão. Julgava que ela gostava daquele momento tanto quanto ele, porque o seu corpo mentia, os seus seios falsificavam à vista, prazer ao toque. Ele escorregava por si com facilidade.

Os homens voltaram a mesa.

– Fizeste batota rameira!

As moedas saltaram, Laye ouviu os seus pensamentos, desviou-se de todos os ataques com rapidez. Não desejava atacá-los, de certa forma tinham razão, ela lera-lhes os pensamentos durante todas as jogadas.

Encheu um punhado de moedas e deixou o resto no chão antes de lhes voltar as costas. Levava sempre o necessário para a sua viagem seguinte e nunca a mais do que isso.

O dinheiro não era suficiente nem para o casal, nem para os colectores. O problema principal residia quando entravam pela casa sem permissão, vinham sempre quando estava sozinha. Passeavam pelos compartimentos, abriam as gavetas, brincavam com a sua roupa, esfregavam-se nela. Lambiam-lhe a pele como se a beijassem, mediam-lhe o corpo com palmos de mão e testavam a rigidez sem permissão. Ela ficava petrificada diante do forno enquanto lhe confiscavam os objectos para cobrir a dívida. Um dia até lhe levaram a faca com que cozinhava, suja de cebola. Laye ficava ali, simplesmente em silêncio, imóvel, à espera, imaginava quanto tempo levaria a carne a cozinhar agora que não poderia parti-la aos pedaços ou fatias. Era a rotina do primeiro ano de casamento com o homem que a comprou, que a salvou da escravidão.

– Onde está o meu prato?

– Só um instante...

Era tão atenciosa, delicada, gentil.”

Laye imobilizou-se na estrada, estava cercada. Os homens seguiram-na da taberna para ajustar contas consigo. As memórias estavam mais acentuadas naquela noite, por estar perto da estrada que levava à cidade onde viveu como esposa de Délian.

“– Onde é que está a minha comida, que raios! – gritou esmurrando a mesa.

Laye olhou-o. Délian sentia a falta de um prato de comida a horas em cima da mesa e nem dera conta que não havia uma única cadeira dentro da cozinha.

– Está quase pronto – murmurou. – Tiveste um mau dia? Há muitos problemas na vila? Entendo que és responsável pela população, sendo o governador, tens preocupações a mais para um homem só. Por outro lado, temos sorte, aquelas coisas horrendas não passam por aqui, nem sequer necessitamos de uma vigília com alarme e a muralha que o teu irmão está a erguer manter-nos-á seguros não

– Do que é que estás a falar? Cala-te, como se o que acontecesse na vila te interessasse? Que sabes dos assuntos da vila ou do meu irmão?

– Estiveste a beber.

– NÃO! – Gritou-lhe e desfez a mesa com um murro antes de sair do compartimento. O perfume das prostitutas encheu a sala.

– Tens recebido os teus homens quando não estou em casa, não é verdade? O meu irmão também?

Laye ficou emocionalmente silenciosa na ombreira da cozinha.

– Posso senti-lo – andou à volta da sala – por aqui, juntos, a rirem-se nas minhas costas, a fornicarem por todo o lado. Como é que pudeste?

Como podes dizer essas coisas?

Como? Olha para mim – Laye saltou com o seu grito.

Délian segurou-a pelos cabelos e puxou-a para a frente de um espelho. Ela era tão bonita, tão jovem, e ele...

Como é que podes deitar-te comigo tão pacificamente se não tens os teus homens de tarde para te compensar pelo sacrifício? Homens, completos e pujantes, todos os dias, todas as tardes... Pensas que não sei?

– Não digas essas coisas, por favor.

– Mentes-me. Todos os dias, tu mentes-me. Eu não te reconheço mais.

– Por favor, não compreendo o que aconteceu hoje mas eu

– Eu não preciso da tua pena! – Atirou-a ao chão. – Eu só quero a confissão.

– Não há nada para dizer. Eu não tenho outros homens. Não há mais ninguém.

– Diz que me amas! – gritou-lhe. Laye não se moveu. Gritou-lhe de novo.

– Amo – a declaração foi uma resposta à ordem não ao sentimento. Délian bateu-lhe. Não era diferente de ser uma escrava.

Silêncio.

– Cavalheiros, aconselho-vos a saírem da minha frente se não querem problemas.

Os homens riram-se.

Silêncio.

Nessa noite Laye dormiu pendurada no poste dos escravos, as suas costas ensanguentadas, mas ela já não sentia qualquer dor nem fome ou raiva apenas solidão. As pessoas do centro da aldeia não voltaram a vê-la, nem no mercado, nem quando algum mais corajoso tentava entrar na vila para vê-la. Sabiam-no, mas não era assunto que lhes pertencesse.

Laye voltou o pescoço do homem que escorregou pelo seu corpo, era o último.

– Raios...

Caminhou pela estrada perdida nas suas memórias. Nem ouviu o alarme, nem a trepidação dos Estranhos que se aproximavam da aldeia para fazerem a sua passagem cega.

Laye abriu os olhos, viu as penas e os rastos de sangue na rua. Olhou para trás, os cadáveres dos homens que a atacaram há pouco não existiam mais, apenas os trilhos da forma como foram arrastados. Estava tão embrenhada nos seus pensamentos que nem deu pela passagem? Apressou-se a entrar na estalagem onde Miller já a esperava deitada trémula sobre a cama.

– Onde estiveste? Procurei-te pela estalagem. Estavas na rua? Como? Os Estranhos acabaram de passar.

– Não estava na rua, estava no – olhou pela janela – nos estábulos, com os cavalos, sabes como os animais ficam loucos na proximidade dos Estranhos e não podemos dar-nos ao luxo de perder as montada agora.

A rapariga limpou as lágrimas.

– Não me consigo habituar ao som. Não sei como podes estar tão calma. Alguma vez viste um desses monstros de perto? – Laye abanou a cabeça. – Nem eu, – mentiram ambas.

Laye deixou-a no quarto para sentar-se ao balcão assim que Miller adormeceu. Bebeu durante toda a noite, as cicatrizes nas costas queimavam-lhe no pensamento, naquela noite específica. Pousou a cabeça sobre o balcão por não conseguir dormir. Ouviu os pensamentos do estalajadeiro, que desejava tomá-la pela sua beleza, mesmo sabendo que era uma mulher perigosa, os homens que bebiam na mesa do fundo igualmente. Ouvia a mulher na cozinha, as filhas, o filho na puberdade, os gemidos do casal do quarto por cima, as apostas dos homens na rua, pensamentos, de traição de confissão... a sua cabeça estava cheia de tal forma que parecia explodir a qualquer instante.

"– Quanto é que me amas? O que estarias disposta a fazer por mim em nome desse amor? Cortarias a tua mão por mim?

De novo o silêncio. Laye procurava nos seus olhos a veracidade das suas palavras e alguma compreensão."

Encheu o copo até transbordar.

"Numa noite Laye ficou sentada no chão, sozinha depois de uma carícia violenta da sua parte. Sem fome, sem raiva, apenas a sua solidão e o vazio sobre os seus ombros que a manteve quente durante a noite até amanhecer. Délian regressava a casa cada vez mais bêbado e pronto para amá-la como uma prostituta. Deixava-a no meio da noite, numa cama desfeita e suja depois da sua satisfação. Numa noite, Laye fugiu para o moinho, Délian estava ensandecido, uma amizade qualquer dissera-lhe que amava Laye e que não poderia viver mais na mesma vila pois tinha-o em grande consideração. Antes de partir necessitara de se confessar ao homem que o tinha como irmão. Há quantos meses que Laye não aparecia no centro? Já nem sequer em público? O homem sentia tantas saudades suas, partiria para não estragar aquela amizade. Lamentava fazê-lo sem vê-la uma última vez.

– Sai daí! Vem cá para fora neste instante! Um dos teus amantes está de partida. Vem cá para fora! – gritou na porta. Laye segurou a cabeça, apertou os ouvidos, sangrava por dentro o que o corpo não aparentava. – Saí, obedece-me! Odeias-me? Já sei... é isso, já sei. Oh! É isso mesmo. Já sei como te posso perdoar. Vem, cá... não tenhas medo, não te baterei. Sou eu, o marido. Vem... isso vem....

Ele sorriu-lhe e abanou a cabeça.

– Já sei como te perdoar. Se me amas de verdade, corta a tua cara, corta toda a tua cara. Quero reconhecer unicamente os teus olhos, só isso. Tens cinco dias para o fazer.

Depois deixou-a. Quase que matou o seu melhor amigo. Um irmão. Era como um irmão. Laye sabia-o porque via tudo acontecer. Via claramente na sua mente através dos seus olhos. Délian perseguiu-o pela estrada até ao limite da vila e um pouco mais, para que ninguém pudesse saber quem o atacara, ou descobrissem o seu cadáver. Quase que o... não, ele matou-o. Ele tinha o seu dinheiro, e a sua bolsa de moedas manchada de sangue, do seu sangue...

Os cinco dias passaram.

Cinco dias!"

– És pior que um homem a beber dessa maneira, diz-me que não estiveste a beber toda a noite. É para afastar possíveis pretendentes? Em que é que estás a pensar, Laye? Já bebeste o suficiente, solta – Miller tirou-lhe o jarro de cima da mesa para notar que ainda estava cheio.

– Hoje é um mau dia, – esfregou o rosto – por isso hoje, só por hoje, não te aproximes de mim.

– Hoje, ontem, há mais de uma semana que não dizes outra coisa. Desde que chegámos a esta cidade.

– Sinto-me melancólica – passou o dedo numa das suas cicatrizes no pescoço.

– Devias. Bates e gritas em todos como se a culpa fosse nossa. Pelo menos ainda não mataste ninguém nesta cidade, o que muito me admira – Laye uniu os lábios num assobio silencioso. – A que se deve esse mau humor de hoje?

– Há sempre um “porquê” à tua volta!

– Conheço-te o suficiente a

–...”a forma como olhas em frente a matutar sobre o passado”.

– Pára com isso. Sabes que não gosto que estejas dentro da minha cabeça.

– Eram apenas as palavras que ias proferir, poupei-te o trabalho.

– Não gosto quando o fazes.

– Em ti, claro. Mas adoras quando uso os meus poderes especiais no resto dos seres vivos de todo o mundo.

Para prevenir acidentes, para fazer o melhor possível, já que somos amaldiçoadas.

– Hoje é uma maldição?

Miller suspirou. Agradeceu o pedaço de pão que o estalajadeiro lhe entregou. Laye enterrou a face nas mãos.

– Ao menos consegues ser tu mesma ao pé de mim.

– Se ao menos soubesses quem sou...

– Estás tão poética hoje, é o teu aniversário?

Laye abriu os seus olhos e Miller entendeu que passara o seu limite.

Era um aniversário importante mas não o seu.

– Se não tens nada de útil para me revelar, deixa-me em paz, vai brincar.

– Não deixo. Tenho novidades.

Laye olhou a rapariga. Provavelmente a passagem dos Estranhos tinha desbloqueado a sua visão e ela poderia ver para onde deveriam seguir? A caça estava a tornar-se difícil e dispendiosa.

– Lamento, não é sobre o teu assunto pessoal. Alguém requer o trabalho de um assassino. Advinha quem é o melhor? A tua fama já ultrapassou qualquer limite de lenda.

– Quanto?

– Quanto? Nem sequer desejas saber onde, quem e como?

– Não me interessa. Quanto? Necessitamos de dinheiro para sair desta cidade o mais rápido possível, se ficar aqui, vou enlouquecer.

– Sete mil.

– Hum... caro. Quem é? – Segurou o folheto do prémio e suspirou – outro trabalho estúpido. Nunca ouvi falar deste Balien, não corresponde ao preço exigido, deve ser uma armadilha.

– Não creio, ele é procurado pelo governador de Tiraíl, o preço está certo, e se for um trabalho fácil, melhor para ti, não? Não te interessas apenas pelo prémio, então? Estás a deixar o teu cabelo crescer novamente?

– Não, tenho de arranjar uma lâmina afiada – Miller sorriu.

– Fica-te bem, pareces menos assustadora.

– Não precisas de me agradar. Eu pago a conta de hoje.

Como é que arranjaste o dinheiro? Laye. Estiveste a jogar?

A assassina olhou para a rapariga com alguma surpresa, sorriu sem lhe responder.

– Sabes que quando jogas provocas sempre distúrbios – a rapariga voltou a suspirar, não haveria nada que pudesse dizer que fizesse Laye ouvi-la, estava ausente desde há alguns dias. – Quando é que partimos?

– Assim que selarem os cavalos.

– Perfeito.

– Agora deixa-me.

O seu tom de voz trouxe-lhe alguma tristeza. Miller debruçou-se sobre a mesa.

Para falar a verdade, tive um sonho. Tenho outras notícias.

Fez uma pausa para estudar o seu rosto. Os olhos verdes de Laye tornaram-se cada vez mais negros. Cingiu o maxilar com alguma dureza, por instantes Miller sentiu algum receio da mulher.

“– Eu não sei, eu apenas, odeio-te. Sinto-me enojado pela tua perfeição. Creio que é isso – amarrou-a um poste no pátio e esquartejou-lhe as costas com chicoteadas, desejava que Laye implorasse pelo seu perdão com confissões irreais.

Os móveis cederam à dança. Não havia vigília para assinalar o recolher. O trepidar das paredes tornou-se ensurdecedor. O tremor de terra anunciado pela corrida das criaturas.

– O que é que disseste, Laye?

– Arderás no inferno! – Délian segurou-se à coluna. Correu para dentro de casa. Na janela passaram formas gigantescas que escureceram ainda mais a noite. Rasgavam as paredes com tal força que arrancavam as telhas e pedras à sua passagem. Ouviram-se gritos pouco depois no centro da vila.

Laye escondeu o rosto entre os braços pendurados no poste. Sentiu as penas lamberam-lhe a face o som ensurdecedor que a enlouquecia. Perdeu a visão diante da escuridão que aquelas criaturas criavam. Uma das criaturas parou diante de si para olhá-la, o cheiro pestilento a sangue era enjoativo, sentiu-a lamber-lhe o sangue das costas. Laye admirou-se por não sentir nada, nem medo, nem frio...

Délian fechou a porta. Deixou Laye na rua entre as criaturas e quedou-se a escutar.

O trepidar cessou.

A escuridão abraçou-o. Primeiro o silêncio, depois a solidão, por fim o vazio. Ele podia sentir a casa, as paredes a murmurar. Pequenas sombras demoníacas que se espalharam à sua volta. O dia amanheceria para uma vila massacrada.”

– Encontrei-o! – a rapariga pendurou-se na mesa para estudar a sua reacção mas Laye continuou de copo na mão, olhar ausente. Deu um gole e contorceu o canto direito da boca num sorriso irónico.

– Aposto que sim.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Capítulo II

O Filho do Estalajadeiro

A pobreza e abandono espalharam-se inevitavelmente pelo terreno pela imposição de leis e regras que tornavam metade da população conquistada em escravos. Pelo menos a metade que na História já o tinha sido. Se a maior parte dos actos de vilania começaram por ser uma desculpa para atrair os antigos heróis, naquela altura eram uma rotina diária. Alianças e traições. Os mitos e os boatos nunca estiveram tão em moda.
Um dos heróis morrera num quarto de forma brutal, Keen conhecia-o como sendo o moleiro, era um homem atormentado mas bondoso, cuja família o tinha abandonado por ter perdido todas as suas posses em jogo e vícios nas cidades vizinhas. Não tinha nada de heróico em si, por isso Keen mal conseguia imaginar que um dia aquele homem tinha sido um verdadeiro herói. Pelo menos não no seu conceito de herói. De certa forma, Keen concordava com o contador de histórias, já não existiam heróis. Pela forma vil com que aqueles cavaleiros voltaram as costas a um rei em necessidade, e deixaram Evar enfrentar a sua morte pelas mãos do próprio povo, também eles mereciam um castigo.
Guardou esses pensamentos para si. Afinal de contas os rostos dos gémeos caídos aos seus pés assombravam-no todas as noites, também ele desejava vingar-se. Mas que motivação poderia ter o contador de histórias desencadeado ao matar os seus amigos? Se Soren nem os conhecia?
Keen levantou-se da sua cama, o seu quarto enegrecido pela noite sem luar conferia-lhe um silêncio apaziguador.
O velho professor Morlar. Pai dos gémeos cujas vidas foram ceifadas naquela malfadada noite... Os gémeos tinham sido as únicas crianças a perecer? Com a confusão que se instalou, não se deu conta, ficou cego de raiva quando viu Gellie morta no chão. A fragilidade de uma flor espezinhada. Não necessitava de levantar os olhos para o canto do quarto, tinha a certeza que ela estava lá, a olhá-lo na sua palidez, a exigir que os vingasse. Por mais que soubesse que as visões dos gémeos sobre si enquanto dormiam não passavam de fruto da sua imaginação, não conseguia evitar o tremor. Acendeu uma vela para a luz afugentar as imagens, mas nesse instante viu os dois sentados no fundo da cama, olhos cavados em negridão e desespero.
A cera caiu na sua pele e a vela no chão. Ignorou a dor da queimadura. Ficou ali imóvel, o seu batimento cardíaco acelerado, a sua respiração pesada na escuridão da noite quando ouviu a cama a ranger, os passos em direcção à porta e o barulho da mesma a fechar-se quando nem se movera.
Keen quedou-se. A sua imaginação estava a passar dos limites, ficava pior em noites de insónia, os pesadelos tornavam-se realidade. A porta do quarto abriu. Chiou até mostrar a luz ainda permanente do corredor. Nenhuma corrente de ar poderia ter aberto a porta trancada. Caminhou para a fechar mas a porta voltou a bater, ao seu lado o rosto de Esian.
Keen suspendeu a respiração, saiu do quarto e tropeçou pelas escadas. Não desejava voltar para o quarto imediatamente. Não falaria dos pesadelos nem das visões ao seu pai, ele ficaria preocupado, principalmente se lhe dissesse que conseguia ver os gémeos desde aquela noite.
Se o alvo do contador de histórias era Soren, porque matara os gémeos igualmente? Não houve guerreiros na vila na altura, ninguém que lhe fizesse frente. Recordou-se da sua coragem naquele instante. Acertara-lhe, tinha a certeza que sim, mas por alguma razão sobrevivera quando os seus amigos não. Gellie voltou a aparecer, desta vez no topo das escadas, mesmo na luz. Ela acocorou-se para abraçar os joelhos. Keen escorregou pelas escadas onde se sentara para conquistar alguma paz.
Atravessou o salão, necessitava de respirar o ar gélido daquela noite. Sentia-se estonteado ao ponto de não ter dado conta que o pai não estava só.
Mesmo quando fechava os olhos podia vê-los.
O seu corpo fervia de determinação. Dos presentes na estalagem ele foi o único que retaliou o ataque, mesmo que em vão, mesmo com os seus seis anos de idade ele tinha mais determinação do que qualquer um dos homens daquela aldeia. Dez anos depois não voltaram a ouvir falar do assassino nem de qualquer tipo de retaliação.
As tropas do rei espalharam-se pelo terreno lavrando qualquer homem ou mulher capaz de fazer frente à lei da capital. O medo que se instaurou fez algumas cidades desertarem para além de fronteiras.
À medida que os anos passaram Keen não foi capaz de esquecer, nem a aparição dos gémeos o possibilitava. O silêncio sobe o incidente tornou-se insuportável para si.
Ninguém falava do acontecido, era como se as crianças e o próprio Soren nunca tivessem existido. Se os pudessem ver como ele os via. Keen abriu os olhos e fechou as portadas com rapidez ao ver Esian estender-lhe a mão.
O seu pai castigava-o severamente sempre que mencionava o nome dos gémeos e ainda mais quando questionava o que acontecera verdadeiramente naquela noite, pois quando acordou a sua mente estava confusa entre a fantasia da história contada e a realidade do que acontecera. Como se fosse o mesmo. Quanto ao comportamento por parte do professor só havia uma explicação. A determinação executara os gémeos de forma a despertar o herói. No entanto, esse sentimento nunca foi absorvido pelo pai das crianças. Morlar não despertara nada para além da inércia.
– O que é que estás a fazer? – Keen pulou. O seu coração já não suportaria mais ansiedade naquela noite.
– Não consigo dormir.
– Vai para o teu quarto. O sono há-de voltar.
Keen fixou o homem sentado numa mesa, debruçado sobre um outro copo vazio.
A determinação não crescera naquele homem embriagado, pelo contrário, crescia numa criança, habitava dentro do seu peito, por anos, roía-lhe a alma. Por vezes era insuportável sequer pensar no assunto. Naquela noite, a raiva e o desejo de vingança que a dita determinação procurou deixar naquela aldeia, não alcançou o seu alvo, pois Keen absorveu-a para si. Todo o sentimento de revolta pela morte das crianças estava em si.
– Não tens treino amanhã? – Acenou pálido, o suor escorreu-lhe pelo rosto quando viu Gellie abraçar o homem sobre a mesa, a expressão do professor tornou-se pesarosa, como se não suportasse o toque da menina.
Havia tanta luz naquele compartimento como é que os podia imaginar com tanta força? Estaria a enlouquecer?
– Não me ouves, rapaz?
Desde aquele dia que se entregara aos treinos de espada, mesmo que o seu pai o proibisse, mesmo que ninguém se oferecesse para o ensinar, ele aprenderia sozinho. Quis partir no mesmo dia atrás do assassino, armado com uma espada de pau e força de vontade de um verdadeiro herói, era o que necessitava na altura para o derrubar. Fosse ele o rei inimigo, ou um demónio qualquer, daqueles que devoravam os guerreiros na fronteira e no bosque com cascalho e que deixavam penas sujas à sua passagem, enfrentaria qualquer um.
Recordava-se de ser a única criança de sete anos que atacara o assassino quando ninguém se moveu para os defender. A sua mente questionara-se. Como é que tinha sobrevivido? A resposta atormentava-o todas as noites de sonhos turbulentos. Sobrevivera por não ser um filho de um heroi? Por não causar qualquer dano ao seu inimigo? Por ser banal como todos os outros habitantes da aldeia que sobreviveram. Por não ser um herói?
– Keen! – o pai estava zangado. Apertou-lhe o rosto para o acordar do transe, a sua voz suou severa mas preocupada. – Estás gelado. Parece que viste um Estranho. Sentes-te bem? Pede à tua mãe para te
– Não é preciso acordá-la, foi só um pesadelo – desviou o olhar para não enfrentar o pai. − E eu já não sou um miúdo!
Levou dez anos para Keen convencer-se que era um homem feito e capaz da sua vingança. Esperara por aquele momento ano após ano. A hora tinha chegado.
A sua casa, a estalagem, já não tinha qualquer vestígio da noite da tragédia no entanto Keen ainda conseguia sentir o cheiro do sangue perto da lareira. Durante a noite, o local do crime estava ocupado por Maldit Morlar. Todas as noites o professor sentava-se em paz junto ao fogo com as suas preces como companhia. Normalmente quando a estalagem já estava vazia o pai fazia-lhe companhia.
Keen não compreendia como é que deixara passar aquele crime impune. Na verdade tinha uma teoria. Cobardia. Essa era a razão principal para justificar aquele acto de inércia, maior do que qualquer desejo em vingar os seus filhos assassinados.
Keen varreu o chão enquanto tentava ouvir a conversa, necessitava de prender o seu olhar no chão, numa tarefa qualquer que o fizesse não desejar ver os gémeos de volta do professor.
Soou o alerta. A vassoura caiu-lhe das mãos. O alarme da torre que ficava sobre o poço no centro da praça, o vigia do ramo mais alto esforçou-se por passar a mensagem com um segundo sopro e depois o silêncio. Estava na hora de ignorar os sentidos. Keen tapou os ouvidos e cerrou os olhos pois o pai não tivera tempo de fechar todas as janelas. Faziam-no em nome da sanidade enquanto as criaturas passavam pela cidade sem interesse ou como uma praga de gafanhotos. Não havia como o prever. Não sobraria nada. No entanto o professor nem reagiu.
A estalagem estremeceu, como se um bando de pássaros enlouquecidos voasse entre as ruas apertadas de contra as paredes. As janelas e as suas portadas sacudiram-se. O som tornou-se cada vez mais insuportável, como escamas e sacudidelas de cascavéis que lhes sugavam a sanidade. Keen encolheu-se. Haveria mais vidros para varrer em poucos segundos e lá fora, se tivesse coragem de espreitar, encontraria as penas sujas com sangue coalhado.
Ainda não era o homem que ambicionava transparecer. Nem tinha a força de um valoroso guerreiro. Achava-se corajoso e enfrentaria o primeiro que duvidasse dessa sua convicção, mas na verdade até o homem que lhe ensinara a lutar desistira de ver algum progresso na sua técnica.
A determinação, tal como o contador de história falara, não tinha razão para o perseguir. Não possuía nada precioso, assim pensava. Não tinha nada de valor que temesse perder. Não tinha falhas, embora os seus inimigos nem soubessem da sua existência. No entanto era a sua escolha vingar-se. Sentiu-se marcado pelo destino em realizar essa missão. Anos depois ainda mantinha a sua promessa, atingir um nível heróico de tal maneira que a determinação o guiasse até ao seu inimigo, só então ele poderia cumprir a sua promessa. Ao contador de histórias, persegui-lo-ia até ao infinito.
Silêncio. As criaturas tinham atravessado longe da estalagem.
– Termina as tuas tarefas e sobe, já é tarde. Não me pareces muito bem – o estalajadeiro passou a mão no seu rosto quando Keen olhou para Maldit, os gémeos desapareceram. Talvez o medo dos Estranhos o tivessem feito retomar à sua sanidade por instantes.
– Pensei que o tempo me pudesse fazer compreende-lo um pouco melhor mas
Keen viu a forma como o pai olhou para o professor, desde que ele chegara à vila com as crianças que nunca conseguira manter um diálogo apaziguador com ninguém mas com o seu pai, Maldit mantinha uma amizade estranha.
Chamavam-lhe o professor por ter construído uma escola com as suas próprias mãos, mas poucos eram os pais que permitiam que as suas crianças perdessem tempo com livros. Keen ainda chegou a visitar o edifício de madeira envernizada, divertia-se imenso, a parte do estudo não lhe dava tanto prazer quanto esfolar os joelhos em brincadeiras com os gémeos. Desde a morte dos amigos que a escola ficara abandonada. Maldit tornara-se mais intragável do que o habitual. No entanto o pai não o olhava com desprezo, mas compreensão.
Limpou-lhe a mesa e encheu de novo o jarro diante de si no mesmo instante em que lhe fez sinal para que subisse as escadas imediatamente. O homem estava gasto, agora não passava de uma mera sombra de uma vaga memória do que fora. Com certeza que Vangard se enganara quando lhe chacinou os filhos, aquele homem não era nada. Não podia ser um herói.
– Sobe! Vá lá...
– Porque é que ele fica ali a fixar o chão? Será que ele ainda consegue ver as manchas de sangue? Não posso aceitar, pai, é mórbido e
– Devias de estar agradecido. Ele paga o suficiente para manter o negócio. Depois do que aconteceu, ninguém ousou subir sequer as escadas da entrada, quanto mais entrar nesta casa. Ele salvou-nos. Com o tempo deixaram de pensar que esta casa estava amaldiçoada.
– Maldita por certo. Salvou-nos? – rosnou como o cão que costumava segui-lo no quintal − o homem fica ali todas as noites, para que deseja recordar se não pretende fazer nada sobre o assunto?
– Deixa-o. Se ele paira naquele canto, é porque não viu os seus filhos morrerem. É por isso. Agora vai! – empurrou o rapaz para as escadas. Estava na hora de fechar, no entanto, era o ouro daquele homem que mantinha o negócio de vento em popa era razão de sobra para não ser indelicado e de forma alguma afastariam o homem das suas memórias.
Keen sentiu-se irritado, qual a razão de tanta reverência? Olhou para trás e viu o pai de cabeça baixa diante do professor. Já nem ensinava, estava sempre bêbado. Se fosse um herói de verdade, mas aquele homem não era nada... a determinação enganara-se a seu respeito. Não havia qualquer memória de um feito grandioso da sua parte. Nem quando destruíram parte da escola na saída da vila.
– Pare com isso pai que o homem não merece – desceu as escadas mas a expressão do estalajadeiro petrificou-o.
– Já chega! Sai daqui imediatamente! Não voltarei a repeti-lo, sobe-me essas malditas escadas e não saias lá de cima até amanhecer ou nunca verás uma espada verdadeira na tua vida.
Keen correu pelas escadas, mas fê-lo contrariado.
– Está na hora de fechar novamente? Estás a fechar este antro cada vez mais cedo.
– Não há ninguém para atender há horas, deve estar quase a amanhecer. Hoje foi um mau dia, é só isso.
– Não sou um bom cliente? Não me serves?
– Irei sempre servi-lo, meu – Maldit silenciou-o com um olhar reprovador – Servi-lo-ei Morlar.
Keen não entendia o que diziam mas viu a forma como o pai se levantou à espera de uma reacção. O professor segurou o seu copo e moveu-o na direcção do pai.
– Pois então, eu sou um cliente. Estás a tentar fugir ao trabalho? Nunca te imaginei preguiçoso. Estás velho. Estamos todos... Ainda estou aqui, com o meu copo vazio, do que é que estás à espera? Traz um para ti também.
– Está a ficar tarde.
– Ainda bem... traz a garrafa, então. Ficará mais cedo em poucas horas, o dia vai nascer – agitou a mão num círculo de pensamento – e encherá os mais novos de sonhos e esperança. – O seu discurso era arrastado mais de desilusão do que da bebida. – Tens um rapaz cheio de raiva lá em cima. Não sei se tens sorte ou não.
– Ele não pretende ofendê-lo na verdade ele não sabe o que diz. Não lhe dê atenção, é um tolo.
– Ele é um rapaz. É tudo o que se pode dizer. O meu teria a sua idade por agora, talvez a minha pequena Gellie pudesse ser a sua mulher e juntos iriam gerir este lugar melhor do que tu.
Keen encolheu-se ao ouviu o nome da menina. Queria aproximar-se para ouvir melhor. Lembrou-se que podia sair pelas traseiras e contornar a estalagem até ouvir pela janela.
– Qual das dúvidas te persegue mais? Fala de uma vez.
O estalajadeiro fez um sinal para pedir permissão e sentou-se ao seu lado enchendo os copos, nesse instante Keen contornou as escadas com gotas de suor na testa, esforçava-se por não pisar o soalho em falso e fabricar ruídos denunciadores, ou o seu pai matá-lo-ia. Maldit viu-o quando bebeu de um trago só.
– Soren foi o último a morrer. Morreu na minha casa.
– Não fales desse assunto. Os heróis morreram, um a um. Foram caçados. Não te esqueças disso, mas não o menciones.
– Se morreram todos não sei, mas se ele crê que os matou, significa que houve homens que morreram no lugar dos verdadeiros, sabe-se lá quantos, quem sobreviveu ou não com outro nome. Keen sobreviveu, ele estava a dois passos e a espada nem lhe tocou. Esqueci-me da razão de tudo isto.
– Não há razão nenhuma. Não te preocupes com a tua família, tu não fazes parte desta história. Estavas fora da cidade na hora do massacre, o teu nome não consta dos homens caçados, ainda faltavam meses para receberes as honras de Evar como seu mais recente cavaleiro. Teoricamente tu não eras um de nós quando isto começou. Esquece este assunto e serve-me mais vinho.
– Há dez anos que Vangard caça os
– Depois de chacinar a maior parte da população, Vangard empalou os homens que me traíram, e iniciou a caça a sete homens e às suas famílias, aqueles que se intitularam heróis em nosso nome fizeram-no por iniciativa, por uma estupidez qualquer que nem eu entendo, talvez por fama e glória, hoje são cadáveres, como os meus filhos.
– Como é que deixámos Vangard ocupar o trono?
– Essa resposta é fácil! Fugimos! – bebeu de novo de uma só vez e voltou a cabeça para a janela. Keen chegara. – O Rei estava morto e um homem só não pode fazer a diferença.
– Ouvi-vos dizer o contrário, um dia. Éramos grandiosos, quase divinos, e deixou tudo para trás, como se estas mortes não tivessem qualquer valor. Não sei se conseguiria estar no seu lugar se Keen tivesse
– Achas-me um cobarde.
– Não, meu senhor.
– Não era uma pergunta.
– Não. – Keen espreitou pela janela, se o cão não estivesse a ganir ao seu ouvido tinha conseguido entender alguma coisa. Amaldiçoou-se, ouvia mais nas escadas do que naquele lugar. Ignorou a sujidade de penas pela passagem dos Estranhos, arrancou o pau da boca do cão e atirou-o para bem longe. – Tentei chamá-lo cobarde, mas não consigo. Maldito seja, Maldit. Nem lhe passa pela cabeça o que possa estar a acontecer na Capela Branca?
– Pensei que tínhamos decidido que a capital deixava de ser o nosso problema no instante em que escolhemos fugir – despejou o conteúdo do copo pela garganta como se fosse água.
Keen ouviu o pai rir. Era um acto estranho. Por outro lado pareceu ter algum efeito no professor que desistiu de levar aos lábios o copo cheio de novo.
– Maldito sejas, Maldit! Há quanto tempo não ouvia essa expressão? Era famosa entre os seus familiares e amigos, o trocadilho pela sua irreverência ajustava-se perfeitamente. Ficava no ouvido. Maldito sejas Maldit! − bateu com as mãos sobre a mesa, Keen já vira o pai zangado, mas o seu olhar naquela hora era maquiavélico. – Não o disse para lhe trazer o passado de volta à mente, no entanto a coincidência do momento ajustou-se igualmente, só o rei lhe desfazia essa teimosia.
Maldit moveu a cabeça na direcção da janela de novo, num movimento lânguido abriu o trinco e inspirou a aragem. Keen acocorou-se debaixo do parapeito e tapou a boca com as mãos, com a janela aberta daquela forma podia ouvir a conversa mas também poderia ser descoberto. O cão corria pateticamente feliz na sua direcção, o rapaz estava em estado de choque. Abanou a cabeça, mas quanto mais o fazia mais o cão corria de cauda a abanar.
– Eu sei a razão que o tornou nisto e para falar à vontade, senhor... faz-me a tripa enrolar-se como se não merecesse ser chamado de homem. Até na sombra, é mais lendário do que algum alguma vez poderia desejar.
– Não desejes, as mulheres patetas é que desejam, sonhos efeminados que nunca se realizam.
– Então isto faz-me uma miúda e muito feia.
– Não te preocupes, comprar-te-ei um vestido amanhã no mercado enquanto escolho entre as maçãs podres as que estão menos mal. Manda esse teu rapaz até mim, já o vi a treinar com Daile, aquele idiota não sabe o que faz, vai estragar o catraio – Maldit espreitou a cabeça de Keen debaixo da janela e sorriu antes de se afastar.
O rapaz abafou os latidos do cão e olhou para cima. Não o viram, estava a salvo, regressou ao quarto incapaz de adormecer, não ouvira absolutamente nada da conversa do pai com o professor, apesar de entender que se tratava de algum segredo antigo. No entanto, o último pedido do professo ainda ecoava na sua mente. Por que razão estava tão feliz?
– Não sei se ele quererá.
– Quererá! Aposto que sim!



– Porque é que a vida é tão enfadonha?
– Não entendo o seu tédio, majestade, depois de tudo o que conquistou? Os seus escravos não o agradam? – não havia expressão na sua face, era como falar com uma estátua, o homem executava as ordens e questionava o rei sem transparecer qualquer sentimento − Deseja que afaste este demónios nefastos do seu pátio? Estão a empestar o palácio. Apodrecem tudo por onde passam. Há penas e sangue por todo o lado e...
– Porque é que não há mais heróis? Não há nada heróico que passe os portões da frente e que me desafie? Porque é que os meus inimigos decidiram ignorar-me? Há quantos anos é que ele morreu? Depois dele não houve outro que me desafiasse, se voltasse atrás no tempo fazia-o de forma diferente.
− Deixava-o viver, majestade?
− Matava-o com as minhas próprias mãos. Talvez assim hoje cantassem o meu nome e não o seu. Evar, Evar, Evar, por um lado, Draquemar por outro. Julguei que ao matar os dois seria um herói para ambos. Continuam a falar de si como se fosse um deus na terra, mas o trono hoje é meu, é a mim que devem respeito. Onde é que eles estão? Os heróis? Estão a demorar...
– Eles tentaram, majestade, passar o portão, quero dizer... – o comandante fechou a janela de vidro, um luxo do Sul, tapou-a com a cortina de veludo pesada. Odiava aquelas criaturas de olhos esbranquiçados, faziam-no esquecer da sua humanidade.
– Sim? O que é que aconteceu?
– Chacinou-os, majestade.
– Ah. Sim, pois foi. Não sobrou nenhum. Eles comeram-nos, não foi?
– Amanhã será um dia melhor.
O comandante continuou de pé ao lado do trono. O salão estava vazio. Os criados faziam o possível para não se demorarem perto do rei. Temiam-no e ao seu mau humor. Por isso Droiel era o lugar mais sossegado que conhecia no reino. Uma torre em ruínas a norte da capital no meio da destruição.
– Tal como o dia anterior, e o que se seguirá. São todos iguais. As pessoas temem-me, pagam-me, obedecem-me. As crianças choram, gritam. A vida é tão monótona...
– Deseja que lhe traga uma mulher, majestade?
– Não me tragas mulher alguma... traz-me antes um rapaz.
O comandante desceu um degrau para o olhar, desejava ver o rosto do seu rei diante aquele pedido tão estranho.
– Disse um rapaz?
– Não o quero para o que estás a pensar! O seu nome é Keen – o rei sorriu – já faz alguns anos, esqueci-me de si, fiz-lhe uma promessa.
– Quem é esse rapaz?
– O responsável por esta cicatriz – mostrou a mão esquerda.
– Sobreviveu?
– Sobreviveu – o rei ergueu-se do trono para se espreguiçar enquanto caminhou até à mesa das taças recheadas de fruta.
– Estava muito misericordioso nesse dia. Foi um mau dia, não me diga?
– A sua morte, no momento, não me interessava, não era esse o meu objectivo na hora. Mas a sua vida sim. Antecipei este dia, em que não restasse um único adversário para me fazer frente, deixei-o viver – escolheu algumas uvas. – Soube que um dia estaria aqui, neste salão, aborrecido de morte sem nada para conquistar, ou vencer. Criei o meu próprio desafio, só isso.
– Tem a certeza que ainda vive? A pobreza espalhou-se até ao vasto azul, deixou as suas criaturas à solta, não sobrou nada ou quase nada, a fome devastou populações e a peste também.
– Sempre espalhei a morte, fiz homens implorar, gritar, chorar, morrer... mas este foi o primeiro que fiz viver. Como ele deve ter crescido, com a sua vida maravilhosa, com o meu nome impresso nos seus pesadelos. É quase como um filho.
– Estou a ver. Onde deseja que vá caçar esse rapaz?
– Na Floresta da Coroas Quebradas – voltou a sorrir – ou deverei ir buscá-lo pessoalmente?
– Não, majestade. Fique. Morreria de tédio pela viagem que me espera, não há qualquer perigo nessa região. Além do mais com a minha ausência todos os traidores existentes tentarão contra a sua vida. Ficará entretido, tenho a certeza – desenhou uma leve vénia.
– Foi uma boa ideia, não foi, Venian?
– Sim, foi majestade. Regressarei em pouco tempo.
O comandante abandonou o salão e o seu instinto fê-lo suspender a respiração. A velha tacteava as paredes do corredor até ficar a um passo de distância de si. Farejou-o. Venian não se moveu, nem quando ela pousou as mãos no seu peito e as deslizou pelo ventre para lhe sentir a masculinidade. Se não fosse cega saberia que a sua expressão continuava imutável, no entanto sentiu-lhe o asco que lhe transbordava pela sua existência e riu.
– Desejas a companhia dos meus demónios para a tua viagem?
– De modo algum – caminhou lentamente pelo corredor depois de afastar com alguma resistência as mãos do seu corpo.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

CAPÍTULO I

COMO MOVER UM HOMEM

– Conte-nos mais uma história. Só mais uma! – imploraram enquanto pulavam de cócoras num cerco apertado para junto da lareira e do contador de histórias. As chamas pintavam tons de crepúsculo nos seus rostos, quer de crianças, quer dos adultos.
– Não estará a ficar demasiado tarde para vós? – a figura de robe fez uma pausa e olhou pela janela. A vila era sossegada, no entanto mesmo no emergir da guerra, não muito longe daqueles bosques. Como é que aqueles agricultores simplórios pretendiam defender as suas casas, quando ignoravam o que acontecia tão perto dali? Como é que alguém podia salvaguardar-se ignorando a rapidez com que o mundo girava?
As crianças aconchegaram-se mais perto da lareira e do contador de histórias. Há cinco noites que a figura sem rosto lhes encantava a mente com histórias heróicas e fantásticos contos de heróis e traidores. De tal forma que conquistou a simpatia de todos mesmo nos seus trapos andrajosos, que continham nas pontas mais pútridas restos de estrada e de caminhos percorridos. A figura alta e esguia, de pele visível nos longos ramos dos quais nasciam mais dez, de onde brotavam botões de ouro e rubis de sangue, fazia-se acompanhar por uma semelhante presença misteriosa. Uma figura idosa, de olhos sem íris que fixavam os miúdos na primeira fila, de lábios finos e gretados, pele engelhada, não os faziam tremer mais do que algumas histórias já contadas.
– Conte-nos o que aconteceu ao Louva-a-deus, o maior ladrão de Tirail.
– Já não tinha terminado essa história? Tinha a certeza que a tinha terminado. Não?
– Oh, por favor, conte-nos de novo, senhor, na outra noite as nossas mães levaram-nos para dormir – intercedeu Esian em favor das crianças. O rapaz, gémeo de Gelliei Morgar quase nos oito anos de idade.
– As vossas mães sabem quanto descanso é que os nossos pequenos heróis necessitam. Vão, está na hora.
– Não. Só mais uma história.
– Conte-nos a história do Estranho das duas caudas.
– Hoje não! – bateu palmas e puxou o seu manto para a face a fim de criar uma sombra profunda sobre os seus olhos negros.
– Qual a razão da sua estadia nesta cidade? Conte-nos essa história. Não me recordo de ter ouvido alguma vez o seu nome desde que chegou – a voz do estalajadeiro ecoou à medida que limpava as mesas junto das escadas.
O som das canecas sobre o balcão, de contra outras, pelas mesas, denunciava a azáfama de quem servia. Enquanto do outro lado do balcão, o arrastar das cadeiras, as portadas das janelas que batiam ao sabor do vento, os passos de quem procurava na taberna algum conforto, reuniam a aldeia num lugar-comum todas as noites desde que ele chegara. A velha abandonou a sua pose fetal diante da lareira, desenrolou a espinha dorsal de tal forma que se ouviu entre o crepitar intenso da fogueira e o ranger do chão. Rodou a cabeça pelo panorama diante de si, seguia o som particular dos passos de um habitante, como um predador que fareja a sua presa à distância e esse movimento chamou à atenção do seu companheiro.
– Não parece tão velho assim ao contrário da sua avozinha... – insistiu o estalajadeiro – qual era mesmo o seu nome?
A velha debruçou-se sobre a figura esguia, os seus olhos abertos raiados de sangue de puro êxtase para murmurar algo, depois tacteou as paredes, o corrimão e desapareceu para o piso superior da taverna, só nesse instante é que o contador de histórias deu atenção ao seu inquisidor.
As crianças saltitaram em volta do estranho, cantavam o seu nome, um falso mas orgulhoso nome, que não convenceu nenhum dos adultos presentes.
– As crianças não mentem, pois não? No entanto, meus queridos heróis, chegou a hora da minha partida. Tenho que vos dizer, adeus...
As crianças expressaram uma tristeza sincera. Não haveria mais contos a partir daquela noite. Na maior parte as histórias eram difíceis de entender, no entanto aqueles serões deixariam saudades.
– Não nos deixe. Fique, oh por favor. Fique connosco – de novo Esian deixou a sua voz transparecer a angústia pela alegria roubada. Era muito mais fácil ouvir as histórias do que lê-las dos livros empoeirados que o pai os obrigava a devorar.
Ergueu a mão a pedido de silêncio.
– Antes de partir, então contar-vos-ei mais uma história.
As crianças, que já não lhe eram estranhas, sossegaram-se. Conhecia-as como se fossem livros escancarados. O seu olhar pousou diante dos gémeos à sua frente. A menina apenas tinhas desobedecido ao pai porque o irmão lhe implorara, por ela não ficaria no mesmo compartimento que aquele ser estranho, não lhe parecia humano. A palavra não poderia ter melhor aplicação no caso do contador de histórias. Estar diante dele, era a mesma sensação que sentia quando a vila era visitada pelas criaturas tenebrosas. Mas tanto para o irmão como para o amigo, Keen, o filho do estalajadeiro, o estrangeiro era o melhor contador de histórias alguma vez existente. Até para os adultos era lamentável saber que seria a última história, os serões na taberna perderiam o entusiasmo que os impulsionava a trabalhar mais rápido na ânsia de ouvir a história do novo dia.
O sorriso sinistro tornou-se o preambulo para um novo conto.
– Irei contar-vos o que me trouxe a esta cidade.
O estalajadeiro volveu a sua atenção para a multidão que se reunia diante do viajante. As crianças não eram as únicas encantadas pela sua voz.
– ...no final, poderão ver a minha face, para que se recordem de mim quando partir – as crianças aplaudiram.
– A história é sobre um rei?
– Não, minha criança – respondeu o contador de histórias ao filho do estalajadeiro – é sobre determinação!
– Determinação? – Enfatizaram as crianças mais novas.
A palavra espalhou-se pelo compartimento, muitos foram aqueles que troçaram do tema da história.
– A determinação, se não sabem, não nasce dentro de cada um de nós por si só, não... sabiam? É sempre motivada por algo que nos é exterior.
– Eu vejo a ruína sobre as nossas cabeças, de um rei que não se importa com as cidades que rodeiam a sua capital luxuosa. Ruína que está cada vez mais perto, e nem por isso a determinação aumenta nos homens – o estalajadeiro falou alto o suficiente.
– A isso, meu amigo, chama-se cobardia, mas isso é outra história, para outra noite.
A mão arrastou-se até à lareira, mergulhou-a entre as chamas revoltas que o lamberam como almas penitentes em busca de salvação. As crianças fizeram o seu papel com aclamações de espanto. Incólume, segurou uma das chamas entre os dedos e puxou-a, a luz de contra os seus trajes sujos projectou-se como uma estrela cadente. Desenhou com o seu rastro num fogo-de-artifício efémero diante dos rostos a palavra escolhida. Mais aplausos.
O contador de histórias iniciou o seu discurso.
Sobre um herói de armadura rude e espada demoníaca que completou a sua missão de conquistar a terra em honra dos tetravós, com grande glória da posse dos demónios. Por demónios não se entendia Estranhos, as criaturas que devoravam tudo à sua passagem e que incutiam medo irracional que os levava à loucura, nem criaturas etéreas, mas traduziu-se pelo povo de feições escravizadas que foram escorraçados continuamente ou feitos prisioneiros.
O eleito provinha do sul. Um herói cujo nome o vento espalhou por todos os cantos do reino e os seus feitos heróicos ficaram registados em todas as memórias de todos os seres vivos. Não só se tornou num herói como numa divindade entre os homens. Um modelo a seguir mas dificilmente possível de copiar. Um homem que reuniu um exército de homens valorosos para reconquistar a sua pátria.
O contador de histórias fez uma breve pausa e fixou a dança das chamas. Assim como muitos dos adultos pensaram sobre o qual o significado verdadeiro dessa pátria. Quando há tantas gerações ambos os povos reclamavam a Capela Branca, a capital, como a única pátria verdadeira?
– No entanto o herói deu por completa a sua tarefa quando expulsou os demónios da terra com misericórdia. Devolveu aos seus, campos e vila. Sobretudo aceitou, que diante daquela vitória, os demónios julgar-se-iam rendidos, subjugados – o estalajadeiro fixou o punho cerrado do homem à medida que a cuspia as palavras com a emoção da narrativa – naquela guerra que já durava há tantos anos, ambas as partes haviam esquecido de que lado estava a razão. O nosso herói ajudou o seu povo, escolheu por ignorar o dom que os deuses lhe haviam conferido. Guardou a espada, enterrou a armadura, ergueu, ao lado dos seus irmãos uma grandiosa muralha em volta da cidade para preservar para sempre a sua herança – não havia dúvida que falava da capital.
O estalajadeiro leu as reacções nas expressões dos adultos, naquela vila apenas existiam os ditos demónios, descendentes de um povo que escravizado. No entanto se o contador de histórias falava de um herói no trono da capital não estaria a falar de Evar, o benevolente. Aquele herói do Sul não o seu herói de forma alguma.
− E os demónios? O que fizeram os demónios?
O contador de histórias acalmou a população mais jovem com um breve som. Fez-se silêncio. O fogo estalou antes de retomar a sua história. Desta vez captara a atenção dos adultos, não só dos pais das crianças, mas de todos os que se encontravam presentes. A cidade de que falava não não estava tão longe dali como desejavam.
− A forma como elevou o seu povo naquela terra sem reclamar um trono ou uma coroa tornou-o o mais respeitado, mas os seus dias de luta não tinham terminado. Nem isso era um destino que ele pudesse controlar. Os demónios desejavam regressar àquele terreno que sempre conheceram como suas casas. Conquistariam a cidade de volta, nem que isso implicasse destruí-la. Mas os demónios sabiam que não tinham como o derrotar, o nosso herói era um homem sábio e o melhor guerreiro do mundo.
Os adultos no balcão trocaram um olhar cúmplice. Os homens que estavam mais perto da porta atiraram moedas para cima da mesa antes de abandonarem a taberna. Gesto que o contador de histórias acompanhou discretamente.
– Sucederam-se quatro batalhas, cada uma pertencente aos sucessivos herdeiros, nem de conquista e de defesa. Das quais, da primeira resultou a destruição do porto Idul, todos os navios foram afundados e os abastecimentos completamente suprimidos para norte. Da segunda resultou a submissão do povo e de todas as aldeias da periferia, os heróis abandonaram a capital em rendição por alguns anos. Os demónios tinham regressado a casa. Uma terceira batalha, a mais sangrenta, pela mesma altura da última reunião da Assembleia, pelas mãos de um rei insano, que estava preocupado com a protecção das pessoas. Cercou a cidade tal como os demónios antes de si. Conquistou as aldeias em redor mas não a capital. Morreu antes disso e foi o seu filho que continuou com as suas conquistas. No entanto a muralha nunca caiu – a pausa trouxe um sorriso desafiador aos seus lábios.
− Os demónios abandonaram a cidade de novo?
– Desta vez, demónios também tinham um herói – acenou às aclamações das crianças.
O estalajadeiro sentiu alguma comoção na sua voz. Já não tinha a certeza de que lado estaria a devoção do contador de histórias quando mencionou a presença de Evar como um herói entre a espada e a parede.
– Tiveram de lutar um contra o outro? Quem venceu? – Esian estava entusiasmado, definitivamente ouvir era muito melhor do que adormecer sobre o aborrecido livro de História. Quão sortudo poderia ser quando o seu pai, o professor da aldeia, iria testá-los naquele assunto brevemente.
– O herói – ele sorriu diante da confusão.
– Qual deles? Qual deles?
– Evar decidiu que não haveria de lutar novamente, que não deveria continuar a derramar sangue sobre aquela terra e exigiu uma discussão pacífica dos termos. Não sabendo que para Draquemar, o herói descendente do sul, já planeara a destruição de tudo. Diziam que era tão louco quanto o pai por sacrificar os seus próprios homens a experiências, tornando-os guerreiros invencíveis. Havia quem acreditasse que os Estranhos eram na verdade os seus homens. Enquanto Evar discutia com os seus cavaleiros o destino do povo da cidade, fora das muralhas o seu povo era massacrado sem qualquer tolerância. Foi quando, aconteceu algo que Evar não esperava. A população da cidade, – ergueu o indicador para enfatizar o conto – indignada pelo facto da sua decisão ter impedido o abrigo dos aldeões na última hora, deixando-os morrer nas portas da muralha, deixou de confiar nas suas decisões. Era impossível explicar-lhes que se tivesse ordenado que os portões das muralhas descessem para salvar o povo, que o seu inimigo encontraria finalmente uma oportunidade de entrar na cidade. Se o tivesse feito, neste preciso momento, todos os habitantes estariam mortos. Se houvesse uma oportunidade para negociar, talvez conseguisse, não seria cobardia, desejava, pelo menos, salvaguardar as vidas dos que habitavam a cidade cercada. Houve quem dissesse que ele havia sido amaldiçoado pelos seus próprios deuses, por recusar embainhar a espada de novo. Outros julgaram-no um déspota interessado em defender um tesouro irreal que se dizia existir no coração da cidade. Muitos boatos e histórias surgiram para explicarem a razão da sua escolha. Esses boatos dividiram a população e instaurou-se o caos dentro da cidade – a forma como o contador de histórias movia as mãos parecia-lhes possuir tal graciosidade de meia dúzia de membros.
As crianças de boca aberta seguiam-no com atenção exímia.
– Evar não era cobarde, nem havia perdido a fé nos seus deuses, nem no seu povo. Simplesmente acreditava que poderiam chegar a um consenso entre partes. O cerco à cidade trouxe fome e descontentamento, destruição e morte. Aos que conseguiam fugir, o exército inimigo recebia-os de braços abertos. Em pouco tempo os demónios tornaram-se heróis que agiram como demónios.
O contador de histórias fez uma nova pausa. Tal como todas as suas histórias as crianças necessitavam de algum tempo para entenderem a subtileza da sua semântica. As mesas da taberna estavam atentas, o estalajadeiro procurou um dos homens mais rudes, e as suas mãos disseram-lhe para não se mover.
− Por isso esta quarta batalha não foi uma luta em campo aberto, – desta vez ele não falava para as filas da frente mas para o silêncio tenebroso diante de si – nem se fez uso de armas nem as portas da cidade foram abertas ao exército conquistador. A população da cidade tomou conta do massacre. Minhas crianças, − sorriu na direcção dos gémeos, Gellie foi a única que estremeceu – esta história não tem um final feliz. Pois saibam que a população, em troca da liberdade, reuniu no castelo, no topo da cidade, a família real incluindo Evar, o mesmo povo que o aclamou como rei contra a sua vontade por crer que era o único capaz de liderar o povo, o mesmo povo que o destronou. Foi nessa torre que o massacre se deu. Dos onze cavaleiros de confiança do rei, quatro deram a sua vida imediatamente na tentativa de o salvar, os restantes fugiram com as suas próprias famílias. A cidade recebeu o exército de conquistadores de braços abertos. Draquemar entrou na cidade dos seus antepassados. Foi só quando as portas se fecharam que os gritos começaram.
A maioria das crianças estava petrificada. Olhos parados, sem expressão diante da lareira. O contador de histórias bebeu uma taça de vinho lentamente.
− Os cavaleiros conseguiram fugir? – foi a primeira vez que Keen se fez ouvir.
− Fugiram. Afastaram-se dos actos heróicos para viverem a vida de homens banais. Ignoraram o massacre da população, o assassinato do seu rei, de ambos os reis, na verdade até hoje ninguém sabe o que verdadeiramente aconteceu naquela cidade. Foi a primeira vez que os Estranhos entraram na capital para caçarem. Foi nesse instante que deixaram de existir heróis.
– Mas os cavaleiros que escaparam – iniciou Esian, Keen sacudiu a cabeça.
– A mim parece-me uma cambada de cobardes.
O contador de histórias sorriu em concordância, elevou o rosto para uma das mesas no fundo da estalagem. A forma como os homens deixaram de beber, e como a comida perdeu o paladar, deixou-o satisfeito.
– Nunca deveriam ter abandonado a cidade!
– Sim, sim, jovem mestre, de uma certa perspectiva, até devem ter parecido, no entanto salvaram as suas próprias famílias e alguns membros da família real. Ah, mas a história ainda está longe de terminar.
– Se ambos os reis morreram quem é que se tornou rei?
– Um novo rei, mas um rei que nunca foi visto como um verdadeiro herói pelos que sobreviveram. Cada lado apenas considerava o seu rei perdido como um último verdadeiro herói. Por isso o jovem rei concluiu que só havia uma forma de marcar a sua existência na História.
Teria de ser mais poderoso do que qualquer um dos reis alguma vez existentes, mais heróico, mais forte. Lembrou-se de caçar todos os homens que lhe pudessem oferecer um desafio verdadeiro. Sabem o que aconteceu?
As crianças voltaram a saltitar para junto de si.
– Os homens esconderam-se. Desistiram de lutar. Como é que o jovem rei poderia tornar-se num novo herói se não tinha inimigos valorosos para derrotar?
– Cobardes! Bem vos disse! – gritou Keen de novo.
– O jovem rei promoveu desafios, torneios, jogos, recompensas, caças, fez de tudo para atrair os heróis do passado à sua presença, mas de nada lhe valeu! – afastou as mãos num gesto significativo. – Nada! Ninguém. Até que...
O estalajadeiro olhou para a mesa do fundo, mas Soren já não estava no salão.
– Até que na sua busca descobriu o paradeiro de um, outro, seguiu as pistas por entre cidades, montanhas, rios, descobriu alguns dos homens, as suas famílias, pois desejava derrotá-los a todos um a um. Principalmente quando descobriu que entre a família de um dos ditos cobardes, – sorriu para Keen – fugira o jovem príncipe.
O estalajadeiro retirou o seu avental, não estava a gostar do caminho que aquela história tomava. A velha não voltara a descer as escadas, e apesar de isso não perturbar nem o estranho nem o público não o deixou menos sossegado. O contador de histórias viu-o contornar o balcão. Estudavam-se mutuamente. Caminhava para si, por entre as crianças, cadeiras e mesas pois desejava ver-lhe a face. Estaria a pensar que ele era um dos caçadores prémios? Talvez aquele homem temesse por algum conhecido presente na sala, se assim o era, a história não tinha sido em vão. Significava que estava num bom caminho. A campanha para desenterrar os cavaleiros do rei assassinado tinha-se tornado numa desculpa para o terror que pairava sobre as pessoas.
Sim. Convenceram-se que seria um caçador de prémios. Provavelmente um homem que fizera um pacto com os verdadeiros demónios de que ninguém desejava falar, levaria notícias ao rei de um possível herói escondido naquela vila.
Um assassino que se escondia atrás dos trapos sujos. Só um homem das artes negras poderia explicar tanto mistério e os milagres que fazia. Pegar no fogo daquela maneira. A mão estava incólume, o que explicaria isso senão bruxaria?
Enquanto o estalajadeiro o estudava, reparou que outro homem subira as escadas, a sua postura escondia uma espada.
– Quantos foram descobertos?
− Só dois, mas eram tão fracos que só serviram para deixar o rei ainda mais irritado. Por isso, durante anos, o rei esforçou-se por fazê-los sair da sua toca. Perdeu o interesse em desafiá-los com jogos, torneios. Perdeu a paciência e começou a demonstrar algum sinal de tirania. Mesmo sobre as ameaças, os aldeões não os entregaram. A sua ira abateu-se sobre o povo, mas nem assim os homens apareceram.
– Tal como eu digo, são cobardes, só cobardes!
− Encontraram o príncipe? – perguntou Gellie com alguma preocupação.
− Ainda não, mas estão à procura neste momento.
− Já chega. Crianças saiam daqui! – a voz do estalajadeiro suou com um trovão.
− Não gostou da minha história? Talvez tema que as crianças tenham pesadelos de noite.
− Não me agradou nem um pouco as mentiras que acabou de contar. Esses homens de que falou não fugiram por opção. Não admito que ensine mentiras às nossas crianças sobre os seus antepassados de forma tão vil. Temos orgulho nos que sobreviveram ao massacre e que possam ainda hoje contar os feitos dos seus verdadeiros heróis. O único cobarde que conheço é o seu rei, se deseja caçar na nossa aldeia poderá regressar e contar-lhe outra história a sua majestade. A sua cobardia em perseguir homens inocentes e as suas famílias por glória própria não merece qualquer louvor.
– Então crê que o rei que governa neste momento a Capela Branca é um cobarde?
O contador de histórias olhou o tecto.
– Sem dúvida. Se um dia o louvei por permitir que ambos os povos coexistissem na mesma cidade, porque pensei que desejasse viver em paz entre seres humanos, hoje tenho a certeza que nunca será nada aos pés de Evar.
O viajante anuiu. Quantas vezes ouviram aquele discurso por outras cidades e aldeias. Olhou de novo as escadas, podia sentir os passos do homem sobre as suas cabeças. Pelos passos contabilizados, o homem caminhara até ao quarto da velha houve silencio quando o homem segurou a maçaneta da porta do seu quarto. Os gemidos que se ouviam provinham do interior do compartimento mas não se assemelhavam a uma mulher idosa com dificuldade em andar. A estranheza aumentou quando o dueto de vozes de um homem e uma mulher proliferou pelo corredor com mais ênfase, quanto tinha a certeza que provinham do quarto da idosa. O homem hesitou e isso denunciou-se nos passos que ecoaram de uma porta para a outra. Estaria a confundir os compartimentos? Talvez a velha estivesse a dormir enquanto a juventude animava a noite. Baixou-se para espreitar pelo buraco. Não havia engano, nem havia velha alguma. O corpo da mulher que serpenteava sobre o do homem num movimento de paixão e domínio fez o homem recuar com o desejo que sentiu no seu corpo descontrolado. A velha teria de estar noutro lugar...
Estava na hora. O contador de histórias enfrentou o estalajadeiro.
– Parece que a minha história ofendeu-vos, não fazia ideia que esta aldeia pertencia aos sobreviventes, pensei que já nem houvessem sobreviventes.
– Mas a história não era sobre a determinação?
O contador de histórias voltou-se para Keen, era o mesmo que se indignara com a cobardia dos cavaleiros em fuga.
– Com razão, jovem mestre, com toda a razão. O rei ficou tão furioso, mas tão furioso pelo despeito de ser ignorado pelos seus súbditos, por se esquecerem de quem os livrou da tirania de Draquemar e da fraqueza de Evar, que fez despertar a determinação em todos os inimigos. Talvez necessitassem apenas de motivação.
– O que é que aconteceu a seguir? – indagaram à medida que o estalajadeiro recuou preocupado.
– Se ele não podia lidar directamente com esses homens então deixou a motivação suspirar nos seus ouvidos, e iniciou a caça, um por um. Procurou os heróis perdidos, esgravatou a terra à procura, por todas as aldeias, cidades, vilas e florestas – o contador de histórias fez uma pausa para olhar o tecto da taberna. Os gemidos que ecoavam na sua mente cessaram.
– Encontrou todos os heróis de que procurava? – levou algum tempo para responder, algo no andar de cima distraíra-o da história.
– Hum... Ainda não.
– Como é que ela os convenceu a voltar a lutar? A motivação, quero dizer...
– Deu-lhes um propósito, um objectivo, algo tão forte que os descontrolou, cegando-os para qualquer raciocínio humano. Algo que nenhuma força teria poder para o silenciar.
– Há alguma coisa tão poderosa assim? – Gellie voltou a estremecer.
– A história já está a prolongar-se, meninos. Vão para junto das vossas mães. Chega de tantos disparates.
– Se existe? Algo capaz de mover um homem contra a sua vontade?... há pois... – olhou as crianças e os adultos – a vingança, a raiva, como sabem, devora a mente de um homem, torna-o insano, fá-lo renascer com uma força grandiosa – abriu os braços na direcção do tecto – maior do que o poder de um deus. Para além do imaginário...
As exclamações ecoaram pelo salão.
Um grito abafado.
O homem no corredor recuperou a compostura e abeirou-se do orifício de novo, desejava vê-la, à mulher de corpo de musa e aos seus cabelos negros. A sua pele sedosa, a forma como cavalgava sobre o corpo do homem. O grito do homem, não era mais de prazer, ela abafou-o com a sua própria boca, beijava-o com a intensidade com que copulava. O êxtase no auge que o contagiou ao ponto de desejar tocar-se no fervor daquela visão.
O beijo terminou. O sangue escorreu-lhe pela cara. O intruso atirou-se sobre a madeira trancada, uma, duas, vezes até a fechadura ceder. A janela estava aberta e não havia forma da mulher ter saltado, nem tempo sequer. O corpo ensanguentado sobre a cama, sem coração.
Ali jazia Soren, herói reverenciado e nunca esquecido.
O estalajadeiro viu o homem correr pelas escadas, tropeçara horrorizado.
– Keen! Afasta-te desse homem imediatamente – disse o estalajadeiro para o filho temendo o pior. O homem vomitava em terror, enquanto balbuciava “está morto, está morto”.
– O bem tem que vencer o mal dê por onde der, não é assim, meus pequenos heróis? – o contador de histórias fingiu-se surpreendido com a protecção do estalajadeiro – Aconteceu algo, senhor?
– Afaste-se do meu filho! – murmurou em ameaça enquanto o homem gritava no chão. − Matou-o. Matou Soren, saia da minha casa. Soren era um bom homem, fez muito por nós, por todos aqueles que o seu rei abandonou com esta caça louca.
– Soren? – o contador de histórias parecia desapontado.
Respirou fundo e olhou o tecto, como se tivesse a certeza que não era aquele o seu alvo. Com sorte naquela aldeia havia mais do que um herói escondido. Contabilizou quantos havia morto com um gesto de dedos. Dos sete sobreviventes, dois morreram pela sua mão na capital, outros caçou-os, muito facilmente sucumbiam à luxúria nos braços de Sae. Mas naquela noite não era Soren quem caçava. Olhou para os gémeos diante de si. Soren não era o pai daquelas crianças, tinha a certeza disso. A sua função naquela aldeia era inspirar o pai daquelas crianças. Dar-lhe motivação para a determinação... necessária.
– Hoje estas crianças aprenderão uma lição valorosa, que jamais irão esquecer,
A mão desenhou novamente, com um rastro de fogo que encantou os presentes num feitiço como uma traça se atrai por uma luz.
A lâmina dançou e o sangue espalhou-se. Ninguém viu o movimento demasiado rápido, quase inumano.
O estalajadeiro foi demasiado lento, não se apercebeu do que acontecera, não até ver o corpo das crianças esquartejadas pelo chão. Os homens gritaram, o pânico instalou-se. Entre as vítimas existiam ainda, crianças de pé, vivas, algumas trémulas, algumas paralisadas, nem sequer sentiam as gotas quentes que lhes manchava o rosto. Os seus espíritos quebrados por terem assistido ao massacre dos seus companheiros.
O contador de histórias retirou o seu manto de lã e limpou com ele a sua espada. Não era velho, pelo contrário, a sua altivez e magreza conferia-lhe um ar imortal.
Keen estava petrificado. Os seus olhos espelhavam puro terror. Sentiu as mãos gélidas do contador de histórias no seu ombro, queimavam como fogo.
Não conseguia ouvir os gritos dos adultos.
– Veja, jovem mestre, abençoe os deuses, por o seu paizinho – apontou para o estalajadeiro – não ser um destes heróis.
O cheiro pestilento tomou conta do seu corpo. Keen recuou, não desejava sujar-se com o sangue que tornava o rosto de Gellie ainda mais pálido. Agarrou um pau e correu atrás do assassino. Não houve nenhum adulto que tentasse impedi-lo de sair, ou que fizesse alguma justiça, a criança foi a única que se lançou na direcção do inimigo sem pensar duas vezes. Atingiu-o na mão com força sem querer saber quem seria aquele homem. Enterrou a madeira rude quebrada como uma ponta de lança na mão do forasteiro.
Vangard usou o seu punho para arremessar o miúdo ao chão. Não o mataria. Deixou-o inconsciente no vão das escadas naquele fim de dia de Verão. Assim que acordasse da sesta podia continuar com a sua vida pacata como todos os outros fariam. Para aqueles que o reconheceram, ele não era só o rosto de um inimigo a relembrar, nem um caçador a mando do rei, ele não era só o rosto do inimigo do povo, como o responsável pela ruína que os abraçaria em breve, Vangard, rei e conquistador em pessoa.

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