A mulher que via tudo
“– Estiveste a jogar?
– Não, claro que não.
– Sabes que não temos tanto dinheiro assim, as economias são mínimas, e a dispensa está cada vez mais vazia, já não te importas com a terra
– Estás a queixar-te, mulher? – Laye afagou-lhe os ombros. Era tão bonita, tão angélica, era quase um pecado gritar-lhe. Ela olharia para si com aqueles poços de negridão grandes e inocentes, enquanto imaginava em que é que tinha errado para merecer o castigo. Acreditava que merecia, de outra forma não haveria explicação para a sua crueldade. Evidente que a culpa era sua.
– Estiveste? – murmurou de novo. – Não me estou a queixar. Eu entendo. A sério que entendo. Mas eu preciso que me digas a verdade, por favor, não me mintas. É muito importante para mim, a tua palavra – o cheiro a bebida pairou até ao seu nariz com o arroto grosseiro. Ela olhou-o fundo nos seus olhos quando a abraçou e tentou beijá-la.
Se fizessem amor todos os seus problemas desapareceriam, assim ele pensava. Que a sua única necessidade era amor, físico, porque era a única forma de amar que ele conhecia e nem nisso era muito dotado.
– Vou perguntar-te mais uma vez, não espera! Não me respondas já. Quero que penses na resposta que me irás dar. Não há ninguém que me diga seja o que for, nem palavras de outras pessoas terão qualquer peso se não as do meu marido. Apenas as do meu marido. Então... agora.... Estiveste a jogar?”
Laye uniu os lábios num assobiou inaudível, um gesto que lhe era característico e colocou as cartas em cima da mesa que deixou os restantes jogadores perplexos pela segunda vez consecutiva. Abriu os braços para puxar o espólio na sua direcção.
“Responde-me por favor, estiveste ou não a jogar? jovem, ela era muito jovem na altura, lamentavelmente nova, ainda nem tinha os seus dezassete anos completos. Apertou o vestido entre os dedos.
– Não.
A rapariga fechou os olhos e deixou-o sugar-lhe a pele. Chamava àquele desejo sôfrego de a devorar: beijos; Amor. Deitava-a sobre uma superfície áspera e fria para que a ternura do seu corpo macio e quente o excitasse ainda mais. Começava por beijar-lhe a face,
Os homens voltaram a mesa.
– Fizeste batota rameira!
As moedas saltaram, Laye ouviu os seus pensamentos, desviou-se de todos os ataques com rapidez. Não desejava atacá-los, de certa forma tinham razão, ela lera-lhes os pensamentos durante todas as jogadas.
Encheu um punhado de moedas e deixou o resto no chão antes de lhes voltar as costas. Levava sempre o necessário para a sua viagem seguinte e nunca a mais do que isso.
“O dinheiro não era suficiente nem para o casal, nem para os colectores. O problema principal residia quando entravam pela casa sem permissão, vinham sempre quando estava sozinha. Passeavam pelos compartimentos, abriam as gavetas, brincavam com a sua roupa, esfregavam-se nela. Lambiam-lhe a pele
– Onde está o meu
– Só um instante...
Era tão atenciosa, delicada, gentil.”
Laye imobilizou-se na estrada, estava cercada. Os homens seguiram-na da taberna para ajustar contas consigo. As memórias estavam mais acentuadas naquela noite, por estar perto da estrada que levava à cidade onde viveu
“– Onde é que está a minha comida, que raios! – gritou esmurrando a mesa.
Laye olhou-o. Délian sentia a falta de um
– Está quase pronto – murmurou. – Tiveste um mau dia? Há muitos problemas na
– Do que é que estás a falar? Cala-te,
– Estiveste a beber.
– NÃO! – Gritou-lhe e desfez a mesa com um murro antes de sair do compartimento. O perfume das prostitutas encheu a sala.
– Tens recebido os teus homens quando não estou em casa, não é verdade? O meu irmão também?
Laye ficou emocionalmente silenciosa na ombreira da cozinha.
– Posso senti-lo – andou à
–
–
Délian segurou-a pelos cabelos e puxou-a para a frente de um espelho. Ela era tão bonita, tão jovem, e ele...
–
– Não digas essas coisas, por favor.
– Mentes-me. Todos os dias, tu mentes-me. Eu não te reconheço mais.
– Por favor, não compreendo o que aconteceu hoje mas eu
– Eu não preciso da tua pena! – Atirou-a ao chão. – Eu só quero a confissão.
– Não há nada para dizer. Eu não tenho outros homens. Não há mais ninguém.
– Diz que me amas! – gritou-lhe. Laye não se moveu. Gritou-lhe de novo.
– Amo – a declaração foi uma resposta à ordem não ao sentimento. Délian bateu-lhe. Não era diferente de ser uma escrava.
Silêncio.
– Cavalheiros, aconselho-vos a saírem da minha frente se não querem problemas.
Os homens riram-se.
Silêncio.
Nessa noite Laye dormiu pendurada no poste dos escravos, as suas costas ensanguentadas, mas ela já não sentia qualquer dor nem fome ou raiva apenas solidão. As pessoas do centro da aldeia não voltaram a vê-la, nem no mercado, nem quando algum mais corajoso tentava entrar na
Laye voltou o pescoço do homem que escorregou pelo seu corpo, era o último.
– Raios...
Caminhou pela estrada perdida nas suas memórias. Nem ouviu o alarme, nem a trepidação dos Estranhos que se aproximavam da aldeia para fazerem a sua passagem cega.
Laye abriu os olhos, viu as penas e os rastos de sangue na rua. Olhou para trás, os cadáveres dos homens que a atacaram há pouco não existiam mais, apenas os trilhos da forma
– Onde estiveste? Procurei-te pela estalagem. Estavas na rua?
– Não estava na rua, estava no – olhou pela janela – nos estábulos, com os cavalos, sabes
A rapariga limpou as lágrimas.
– Não me consigo habituar ao som. Não sei
Laye deixou-a no quarto para sentar-se ao balcão assim que Miller adormeceu. Bebeu durante toda a noite, as cicatrizes nas costas queimavam-lhe no pensamento, naquela noite específica. Pousou a cabeça sobre o balcão por não conseguir dormir. Ouviu os pensamentos do estalajadeiro, que desejava tomá-la pela sua beleza, mesmo sabendo que era uma mulher perigosa, os homens que bebiam na mesa do fundo igualmente. Ouvia a mulher na cozinha, as filhas, o filho na puberdade, os gemidos do casal do quarto por cima, as apostas dos homens na rua, pensamentos, de traição de confissão... a sua cabeça estava cheia de tal forma que parecia explodir a qualquer instante.
"– Quanto é que me amas? O que estarias disposta a fazer por mim em nome desse amor? Cortarias a tua mão por mim?
De novo o silêncio. Laye procurava nos seus olhos a veracidade das suas palavras e alguma compreensão."
Encheu o copo até transbordar.
"Numa noite Laye ficou sentada no chão, sozinha depois de uma carícia violenta da sua parte. Sem fome, sem raiva, apenas a sua solidão e o vazio sobre os seus ombros que a manteve quente durante a noite até amanhecer. Délian regressava a casa cada vez mais bêbado e pronto para amá-la
– Sai daí! Vem cá para fora neste instante! Um dos teus amantes está de partida. Vem cá para fora! – gritou na porta. Laye segurou a cabeça, apertou os ouvidos, sangrava por dentro o que o corpo não aparentava. – Saí, obedece-me! Odeias-me? Já sei... é isso, já sei. Oh! É isso mesmo. Já sei
Ele sorriu-lhe e abanou a cabeça.
– Já sei
Depois deixou-a. Quase que matou o seu melhor amigo. Um irmão. Era
Os cinco dias passaram.
Cinco dias!"
– És pior que um homem a beber dessa maneira, diz-me que não estiveste a beber toda a noite. É para afastar possíveis pretendentes? Em que é que estás a pensar, Laye? Já bebeste o suficiente, solta – Miller tirou-lhe o jarro de cima da mesa para notar que ainda estava cheio.
– Hoje é um mau dia, – esfregou o rosto – por isso hoje, só por hoje, não te aproximes de mim.
– Hoje, ontem, há mais de uma semana que não dizes outra coisa. Desde que chegámos a esta cidade.
– Sinto-me melancólica – passou o dedo numa das suas cicatrizes no pescoço.
– Devias. Bates e gritas em todos
– Há sempre um “porquê” à tua
– Conheço-te o suficiente a
–...”a forma
– Pára com isso. Sabes que não gosto que estejas dentro da minha cabeça.
– Eram apenas as palavras que ias proferir, poupei-te o trabalho.
– Não gosto quando o fazes.
– Em ti, claro. Mas adoras quando uso os meus poderes especiais no resto dos seres vivos de todo o mundo.
–
– Hoje é uma maldição?
Miller suspirou. Agradeceu o pedaço de pão que o estalajadeiro lhe entregou. Laye enterrou a face nas mãos.
– Ao menos consegues ser tu mesma ao pé de mim.
– Se ao menos soubesses quem sou...
– Estás tão poética hoje, é o teu aniversário?
Laye abriu os seus olhos e Miller entendeu que passara o seu limite.
Era um aniversário importante mas não o seu.
– Se não tens nada de útil para me revelar, deixa-me em paz, vai brincar.
– Não deixo. Tenho novidades.
Laye olhou a rapariga. Provavelmente a passagem dos Estranhos tinha desbloqueado a sua visão e ela poderia ver para onde deveriam seguir? A caça estava a tornar-se difícil e dispendiosa.
– Lamento, não é sobre o teu assunto pessoal. Alguém requer o trabalho de um assassino. Advinha quem é o melhor? A tua fama já ultrapassou qualquer limite de lenda.
– Quanto?
– Quanto? Nem sequer desejas saber onde, quem e
– Não me interessa. Quanto? Necessitamos de dinheiro para sair desta cidade o mais rápido possível, se ficar aqui, vou enlouquecer.
– Sete mil.
– Hum... caro. Quem é? – Segurou o folheto do prémio e suspirou – outro trabalho estúpido. Nunca ouvi falar deste Balien, não corresponde ao preço exigido, deve ser uma armadilha.
– Não creio, ele é procurado pelo governador de Tiraíl, o preço está certo, e se for um trabalho fácil, melhor para ti, não? Não te interessas apenas pelo prémio, então? Estás a deixar o teu cabelo crescer novamente?
– Não, tenho de arranjar uma lâmina afiada – Miller sorriu.
– Fica-te bem, pareces menos assustadora.
– Não precisas de me agradar. Eu pago a conta de hoje.
–
A assassina olhou para a rapariga com alguma surpresa, sorriu sem lhe responder.
– Sabes que quando jogas provocas sempre distúrbios – a rapariga voltou a suspirar, não haveria nada que pudesse dizer que fizesse Laye ouvi-la, estava ausente desde há alguns dias. – Quando é que partimos?
– Assim que selarem os cavalos.
– Perfeito.
– Agora deixa-me.
O seu tom de voz trouxe-lhe alguma tristeza. Miller debruçou-se sobre a mesa.
–
“– Eu não sei, eu apenas, odeio-te. Sinto-me enojado pela tua perfeição. Creio que é isso – amarrou-a um poste no pátio e esquartejou-lhe as costas com chicoteadas, desejava que Laye implorasse pelo seu perdão com confissões irreais.
Os móveis cederam à dança. Não havia vigília para assinalar o recolher. O trepidar das paredes tornou-se ensurdecedor. O tremor de terra anunciado pela corrida das criaturas.
– O que é que disseste, Laye?
– Arderás no inferno! – Délian segurou-se à coluna. Correu para dentro de casa. Na janela passaram formas gigantescas que escureceram ainda mais a noite. Rasgavam as paredes com tal força que arrancavam as telhas e pedras à sua passagem. Ouviram-se gritos pouco depois no centro da
Laye escondeu o rosto entre os braços pendurados no poste. Sentiu as penas lamberam-lhe a face o som ensurdecedor que a enlouquecia. Perdeu a visão diante da escuridão que aquelas criaturas criavam. Uma das criaturas parou diante de si para olhá-la, o cheiro pestilento a sangue era enjoativo, sentiu-a lamber-lhe o sangue das costas. Laye admirou-se por não sentir nada, nem medo, nem frio...
Délian fechou a porta. Deixou Laye na rua entre as criaturas e quedou-se a escutar.
O trepidar cessou.
A escuridão abraçou-o. Primeiro o silêncio, depois a solidão, por fim o vazio. Ele podia sentir a casa, as paredes a murmurar. Pequenas sombras demoníacas que se espalharam à sua
– Encontrei-o! – a rapariga pendurou-se na mesa para estudar a sua reacção mas Laye continuou de copo na mão, olhar ausente. Deu um gole e contorceu o canto direito da boca num sorriso irónico.
– Aposto que sim.