Literatura Fantástica

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domingo, 30 de agosto de 2009

Capítulo III

A mulher que via tudo


– Estiveste a jogar?

– Não, claro que não.

– Sabes que não temos tanto dinheiro assim, as economias são mínimas, e a dispensa está cada vez mais vazia, já não te importas com a terra como dantes.

– Estás a queixar-te, mulher? – Laye afagou-lhe os ombros. Era tão bonita, tão angélica, era quase um pecado gritar-lhe. Ela olharia para si com aqueles poços de negridão grandes e inocentes, enquanto imaginava em que é que tinha errado para merecer o castigo. Acreditava que merecia, de outra forma não haveria explicação para a sua crueldade. Evidente que a culpa era sua.

– Estiveste? – murmurou de novo. – Não me estou a queixar. Eu entendo. A sério que entendo. Mas eu preciso que me digas a verdade, por favor, não me mintas. É muito importante para mim, a tua palavra – o cheiro a bebida pairou até ao seu nariz com o arroto grosseiro. Ela olhou-o fundo nos seus olhos quando a abraçou e tentou beijá-la.

Se fizessem amor todos os seus problemas desapareceriam, assim ele pensava. Que a sua única necessidade era amor, físico, porque era a única forma de amar que ele conhecia e nem nisso era muito dotado.

– Vou perguntar-te mais uma vez, não espera! Não me respondas já. Quero que penses na resposta que me irás dar. Não há ninguém que me diga seja o que for, nem palavras de outras pessoas terão qualquer peso se não as do meu marido. Apenas as do meu marido. Então... agora.... Estiveste a jogar?”

Laye uniu os lábios num assobiou inaudível, um gesto que lhe era característico e colocou as cartas em cima da mesa que deixou os restantes jogadores perplexos pela segunda vez consecutiva. Abriu os braços para puxar o espólio na sua direcção.

Responde-me por favor, estiveste ou não a jogar? jovem, ela era muito jovem na altura, lamentavelmente nova, ainda nem tinha os seus dezassete anos completos. Apertou o vestido entre os dedos.

– Não.

A rapariga fechou os olhos e deixou-o sugar-lhe a pele. Chamava àquele desejo sôfrego de a devorar: beijos; Amor. Deitava-a sobre uma superfície áspera e fria para que a ternura do seu corpo macio e quente o excitasse ainda mais. Começava por beijar-lhe a face, como era bela. As mãos adivinhavam um caminho seguinte por onde a boca percorria. Já não a beijava nos lábios, isso perdeu-se com a paixão. Julgava que ela gostava daquele momento tanto quanto ele, porque o seu corpo mentia, os seus seios falsificavam à vista, prazer ao toque. Ele escorregava por si com facilidade.

Os homens voltaram a mesa.

– Fizeste batota rameira!

As moedas saltaram, Laye ouviu os seus pensamentos, desviou-se de todos os ataques com rapidez. Não desejava atacá-los, de certa forma tinham razão, ela lera-lhes os pensamentos durante todas as jogadas.

Encheu um punhado de moedas e deixou o resto no chão antes de lhes voltar as costas. Levava sempre o necessário para a sua viagem seguinte e nunca a mais do que isso.

O dinheiro não era suficiente nem para o casal, nem para os colectores. O problema principal residia quando entravam pela casa sem permissão, vinham sempre quando estava sozinha. Passeavam pelos compartimentos, abriam as gavetas, brincavam com a sua roupa, esfregavam-se nela. Lambiam-lhe a pele como se a beijassem, mediam-lhe o corpo com palmos de mão e testavam a rigidez sem permissão. Ela ficava petrificada diante do forno enquanto lhe confiscavam os objectos para cobrir a dívida. Um dia até lhe levaram a faca com que cozinhava, suja de cebola. Laye ficava ali, simplesmente em silêncio, imóvel, à espera, imaginava quanto tempo levaria a carne a cozinhar agora que não poderia parti-la aos pedaços ou fatias. Era a rotina do primeiro ano de casamento com o homem que a comprou, que a salvou da escravidão.

– Onde está o meu prato?

– Só um instante...

Era tão atenciosa, delicada, gentil.”

Laye imobilizou-se na estrada, estava cercada. Os homens seguiram-na da taberna para ajustar contas consigo. As memórias estavam mais acentuadas naquela noite, por estar perto da estrada que levava à cidade onde viveu como esposa de Délian.

“– Onde é que está a minha comida, que raios! – gritou esmurrando a mesa.

Laye olhou-o. Délian sentia a falta de um prato de comida a horas em cima da mesa e nem dera conta que não havia uma única cadeira dentro da cozinha.

– Está quase pronto – murmurou. – Tiveste um mau dia? Há muitos problemas na vila? Entendo que és responsável pela população, sendo o governador, tens preocupações a mais para um homem só. Por outro lado, temos sorte, aquelas coisas horrendas não passam por aqui, nem sequer necessitamos de uma vigília com alarme e a muralha que o teu irmão está a erguer manter-nos-á seguros não

– Do que é que estás a falar? Cala-te, como se o que acontecesse na vila te interessasse? Que sabes dos assuntos da vila ou do meu irmão?

– Estiveste a beber.

– NÃO! – Gritou-lhe e desfez a mesa com um murro antes de sair do compartimento. O perfume das prostitutas encheu a sala.

– Tens recebido os teus homens quando não estou em casa, não é verdade? O meu irmão também?

Laye ficou emocionalmente silenciosa na ombreira da cozinha.

– Posso senti-lo – andou à volta da sala – por aqui, juntos, a rirem-se nas minhas costas, a fornicarem por todo o lado. Como é que pudeste?

Como podes dizer essas coisas?

Como? Olha para mim – Laye saltou com o seu grito.

Délian segurou-a pelos cabelos e puxou-a para a frente de um espelho. Ela era tão bonita, tão jovem, e ele...

Como é que podes deitar-te comigo tão pacificamente se não tens os teus homens de tarde para te compensar pelo sacrifício? Homens, completos e pujantes, todos os dias, todas as tardes... Pensas que não sei?

– Não digas essas coisas, por favor.

– Mentes-me. Todos os dias, tu mentes-me. Eu não te reconheço mais.

– Por favor, não compreendo o que aconteceu hoje mas eu

– Eu não preciso da tua pena! – Atirou-a ao chão. – Eu só quero a confissão.

– Não há nada para dizer. Eu não tenho outros homens. Não há mais ninguém.

– Diz que me amas! – gritou-lhe. Laye não se moveu. Gritou-lhe de novo.

– Amo – a declaração foi uma resposta à ordem não ao sentimento. Délian bateu-lhe. Não era diferente de ser uma escrava.

Silêncio.

– Cavalheiros, aconselho-vos a saírem da minha frente se não querem problemas.

Os homens riram-se.

Silêncio.

Nessa noite Laye dormiu pendurada no poste dos escravos, as suas costas ensanguentadas, mas ela já não sentia qualquer dor nem fome ou raiva apenas solidão. As pessoas do centro da aldeia não voltaram a vê-la, nem no mercado, nem quando algum mais corajoso tentava entrar na vila para vê-la. Sabiam-no, mas não era assunto que lhes pertencesse.

Laye voltou o pescoço do homem que escorregou pelo seu corpo, era o último.

– Raios...

Caminhou pela estrada perdida nas suas memórias. Nem ouviu o alarme, nem a trepidação dos Estranhos que se aproximavam da aldeia para fazerem a sua passagem cega.

Laye abriu os olhos, viu as penas e os rastos de sangue na rua. Olhou para trás, os cadáveres dos homens que a atacaram há pouco não existiam mais, apenas os trilhos da forma como foram arrastados. Estava tão embrenhada nos seus pensamentos que nem deu pela passagem? Apressou-se a entrar na estalagem onde Miller já a esperava deitada trémula sobre a cama.

– Onde estiveste? Procurei-te pela estalagem. Estavas na rua? Como? Os Estranhos acabaram de passar.

– Não estava na rua, estava no – olhou pela janela – nos estábulos, com os cavalos, sabes como os animais ficam loucos na proximidade dos Estranhos e não podemos dar-nos ao luxo de perder as montada agora.

A rapariga limpou as lágrimas.

– Não me consigo habituar ao som. Não sei como podes estar tão calma. Alguma vez viste um desses monstros de perto? – Laye abanou a cabeça. – Nem eu, – mentiram ambas.

Laye deixou-a no quarto para sentar-se ao balcão assim que Miller adormeceu. Bebeu durante toda a noite, as cicatrizes nas costas queimavam-lhe no pensamento, naquela noite específica. Pousou a cabeça sobre o balcão por não conseguir dormir. Ouviu os pensamentos do estalajadeiro, que desejava tomá-la pela sua beleza, mesmo sabendo que era uma mulher perigosa, os homens que bebiam na mesa do fundo igualmente. Ouvia a mulher na cozinha, as filhas, o filho na puberdade, os gemidos do casal do quarto por cima, as apostas dos homens na rua, pensamentos, de traição de confissão... a sua cabeça estava cheia de tal forma que parecia explodir a qualquer instante.

"– Quanto é que me amas? O que estarias disposta a fazer por mim em nome desse amor? Cortarias a tua mão por mim?

De novo o silêncio. Laye procurava nos seus olhos a veracidade das suas palavras e alguma compreensão."

Encheu o copo até transbordar.

"Numa noite Laye ficou sentada no chão, sozinha depois de uma carícia violenta da sua parte. Sem fome, sem raiva, apenas a sua solidão e o vazio sobre os seus ombros que a manteve quente durante a noite até amanhecer. Délian regressava a casa cada vez mais bêbado e pronto para amá-la como uma prostituta. Deixava-a no meio da noite, numa cama desfeita e suja depois da sua satisfação. Numa noite, Laye fugiu para o moinho, Délian estava ensandecido, uma amizade qualquer dissera-lhe que amava Laye e que não poderia viver mais na mesma vila pois tinha-o em grande consideração. Antes de partir necessitara de se confessar ao homem que o tinha como irmão. Há quantos meses que Laye não aparecia no centro? Já nem sequer em público? O homem sentia tantas saudades suas, partiria para não estragar aquela amizade. Lamentava fazê-lo sem vê-la uma última vez.

– Sai daí! Vem cá para fora neste instante! Um dos teus amantes está de partida. Vem cá para fora! – gritou na porta. Laye segurou a cabeça, apertou os ouvidos, sangrava por dentro o que o corpo não aparentava. – Saí, obedece-me! Odeias-me? Já sei... é isso, já sei. Oh! É isso mesmo. Já sei como te posso perdoar. Vem, cá... não tenhas medo, não te baterei. Sou eu, o marido. Vem... isso vem....

Ele sorriu-lhe e abanou a cabeça.

– Já sei como te perdoar. Se me amas de verdade, corta a tua cara, corta toda a tua cara. Quero reconhecer unicamente os teus olhos, só isso. Tens cinco dias para o fazer.

Depois deixou-a. Quase que matou o seu melhor amigo. Um irmão. Era como um irmão. Laye sabia-o porque via tudo acontecer. Via claramente na sua mente através dos seus olhos. Délian perseguiu-o pela estrada até ao limite da vila e um pouco mais, para que ninguém pudesse saber quem o atacara, ou descobrissem o seu cadáver. Quase que o... não, ele matou-o. Ele tinha o seu dinheiro, e a sua bolsa de moedas manchada de sangue, do seu sangue...

Os cinco dias passaram.

Cinco dias!"

– És pior que um homem a beber dessa maneira, diz-me que não estiveste a beber toda a noite. É para afastar possíveis pretendentes? Em que é que estás a pensar, Laye? Já bebeste o suficiente, solta – Miller tirou-lhe o jarro de cima da mesa para notar que ainda estava cheio.

– Hoje é um mau dia, – esfregou o rosto – por isso hoje, só por hoje, não te aproximes de mim.

– Hoje, ontem, há mais de uma semana que não dizes outra coisa. Desde que chegámos a esta cidade.

– Sinto-me melancólica – passou o dedo numa das suas cicatrizes no pescoço.

– Devias. Bates e gritas em todos como se a culpa fosse nossa. Pelo menos ainda não mataste ninguém nesta cidade, o que muito me admira – Laye uniu os lábios num assobio silencioso. – A que se deve esse mau humor de hoje?

– Há sempre um “porquê” à tua volta!

– Conheço-te o suficiente a

–...”a forma como olhas em frente a matutar sobre o passado”.

– Pára com isso. Sabes que não gosto que estejas dentro da minha cabeça.

– Eram apenas as palavras que ias proferir, poupei-te o trabalho.

– Não gosto quando o fazes.

– Em ti, claro. Mas adoras quando uso os meus poderes especiais no resto dos seres vivos de todo o mundo.

Para prevenir acidentes, para fazer o melhor possível, já que somos amaldiçoadas.

– Hoje é uma maldição?

Miller suspirou. Agradeceu o pedaço de pão que o estalajadeiro lhe entregou. Laye enterrou a face nas mãos.

– Ao menos consegues ser tu mesma ao pé de mim.

– Se ao menos soubesses quem sou...

– Estás tão poética hoje, é o teu aniversário?

Laye abriu os seus olhos e Miller entendeu que passara o seu limite.

Era um aniversário importante mas não o seu.

– Se não tens nada de útil para me revelar, deixa-me em paz, vai brincar.

– Não deixo. Tenho novidades.

Laye olhou a rapariga. Provavelmente a passagem dos Estranhos tinha desbloqueado a sua visão e ela poderia ver para onde deveriam seguir? A caça estava a tornar-se difícil e dispendiosa.

– Lamento, não é sobre o teu assunto pessoal. Alguém requer o trabalho de um assassino. Advinha quem é o melhor? A tua fama já ultrapassou qualquer limite de lenda.

– Quanto?

– Quanto? Nem sequer desejas saber onde, quem e como?

– Não me interessa. Quanto? Necessitamos de dinheiro para sair desta cidade o mais rápido possível, se ficar aqui, vou enlouquecer.

– Sete mil.

– Hum... caro. Quem é? – Segurou o folheto do prémio e suspirou – outro trabalho estúpido. Nunca ouvi falar deste Balien, não corresponde ao preço exigido, deve ser uma armadilha.

– Não creio, ele é procurado pelo governador de Tiraíl, o preço está certo, e se for um trabalho fácil, melhor para ti, não? Não te interessas apenas pelo prémio, então? Estás a deixar o teu cabelo crescer novamente?

– Não, tenho de arranjar uma lâmina afiada – Miller sorriu.

– Fica-te bem, pareces menos assustadora.

– Não precisas de me agradar. Eu pago a conta de hoje.

Como é que arranjaste o dinheiro? Laye. Estiveste a jogar?

A assassina olhou para a rapariga com alguma surpresa, sorriu sem lhe responder.

– Sabes que quando jogas provocas sempre distúrbios – a rapariga voltou a suspirar, não haveria nada que pudesse dizer que fizesse Laye ouvi-la, estava ausente desde há alguns dias. – Quando é que partimos?

– Assim que selarem os cavalos.

– Perfeito.

– Agora deixa-me.

O seu tom de voz trouxe-lhe alguma tristeza. Miller debruçou-se sobre a mesa.

Para falar a verdade, tive um sonho. Tenho outras notícias.

Fez uma pausa para estudar o seu rosto. Os olhos verdes de Laye tornaram-se cada vez mais negros. Cingiu o maxilar com alguma dureza, por instantes Miller sentiu algum receio da mulher.

“– Eu não sei, eu apenas, odeio-te. Sinto-me enojado pela tua perfeição. Creio que é isso – amarrou-a um poste no pátio e esquartejou-lhe as costas com chicoteadas, desejava que Laye implorasse pelo seu perdão com confissões irreais.

Os móveis cederam à dança. Não havia vigília para assinalar o recolher. O trepidar das paredes tornou-se ensurdecedor. O tremor de terra anunciado pela corrida das criaturas.

– O que é que disseste, Laye?

– Arderás no inferno! – Délian segurou-se à coluna. Correu para dentro de casa. Na janela passaram formas gigantescas que escureceram ainda mais a noite. Rasgavam as paredes com tal força que arrancavam as telhas e pedras à sua passagem. Ouviram-se gritos pouco depois no centro da vila.

Laye escondeu o rosto entre os braços pendurados no poste. Sentiu as penas lamberam-lhe a face o som ensurdecedor que a enlouquecia. Perdeu a visão diante da escuridão que aquelas criaturas criavam. Uma das criaturas parou diante de si para olhá-la, o cheiro pestilento a sangue era enjoativo, sentiu-a lamber-lhe o sangue das costas. Laye admirou-se por não sentir nada, nem medo, nem frio...

Délian fechou a porta. Deixou Laye na rua entre as criaturas e quedou-se a escutar.

O trepidar cessou.

A escuridão abraçou-o. Primeiro o silêncio, depois a solidão, por fim o vazio. Ele podia sentir a casa, as paredes a murmurar. Pequenas sombras demoníacas que se espalharam à sua volta. O dia amanheceria para uma vila massacrada.”

– Encontrei-o! – a rapariga pendurou-se na mesa para estudar a sua reacção mas Laye continuou de copo na mão, olhar ausente. Deu um gole e contorceu o canto direito da boca num sorriso irónico.

– Aposto que sim.

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