Literatura Fantástica

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quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Capítulo II

O Filho do Estalajadeiro

A pobreza e abandono espalharam-se inevitavelmente pelo terreno pela imposição de leis e regras que tornavam metade da população conquistada em escravos. Pelo menos a metade que na História já o tinha sido. Se a maior parte dos actos de vilania começaram por ser uma desculpa para atrair os antigos heróis, naquela altura eram uma rotina diária. Alianças e traições. Os mitos e os boatos nunca estiveram tão em moda.
Um dos heróis morrera num quarto de forma brutal, Keen conhecia-o como sendo o moleiro, era um homem atormentado mas bondoso, cuja família o tinha abandonado por ter perdido todas as suas posses em jogo e vícios nas cidades vizinhas. Não tinha nada de heróico em si, por isso Keen mal conseguia imaginar que um dia aquele homem tinha sido um verdadeiro herói. Pelo menos não no seu conceito de herói. De certa forma, Keen concordava com o contador de histórias, já não existiam heróis. Pela forma vil com que aqueles cavaleiros voltaram as costas a um rei em necessidade, e deixaram Evar enfrentar a sua morte pelas mãos do próprio povo, também eles mereciam um castigo.
Guardou esses pensamentos para si. Afinal de contas os rostos dos gémeos caídos aos seus pés assombravam-no todas as noites, também ele desejava vingar-se. Mas que motivação poderia ter o contador de histórias desencadeado ao matar os seus amigos? Se Soren nem os conhecia?
Keen levantou-se da sua cama, o seu quarto enegrecido pela noite sem luar conferia-lhe um silêncio apaziguador.
O velho professor Morlar. Pai dos gémeos cujas vidas foram ceifadas naquela malfadada noite... Os gémeos tinham sido as únicas crianças a perecer? Com a confusão que se instalou, não se deu conta, ficou cego de raiva quando viu Gellie morta no chão. A fragilidade de uma flor espezinhada. Não necessitava de levantar os olhos para o canto do quarto, tinha a certeza que ela estava lá, a olhá-lo na sua palidez, a exigir que os vingasse. Por mais que soubesse que as visões dos gémeos sobre si enquanto dormiam não passavam de fruto da sua imaginação, não conseguia evitar o tremor. Acendeu uma vela para a luz afugentar as imagens, mas nesse instante viu os dois sentados no fundo da cama, olhos cavados em negridão e desespero.
A cera caiu na sua pele e a vela no chão. Ignorou a dor da queimadura. Ficou ali imóvel, o seu batimento cardíaco acelerado, a sua respiração pesada na escuridão da noite quando ouviu a cama a ranger, os passos em direcção à porta e o barulho da mesma a fechar-se quando nem se movera.
Keen quedou-se. A sua imaginação estava a passar dos limites, ficava pior em noites de insónia, os pesadelos tornavam-se realidade. A porta do quarto abriu. Chiou até mostrar a luz ainda permanente do corredor. Nenhuma corrente de ar poderia ter aberto a porta trancada. Caminhou para a fechar mas a porta voltou a bater, ao seu lado o rosto de Esian.
Keen suspendeu a respiração, saiu do quarto e tropeçou pelas escadas. Não desejava voltar para o quarto imediatamente. Não falaria dos pesadelos nem das visões ao seu pai, ele ficaria preocupado, principalmente se lhe dissesse que conseguia ver os gémeos desde aquela noite.
Se o alvo do contador de histórias era Soren, porque matara os gémeos igualmente? Não houve guerreiros na vila na altura, ninguém que lhe fizesse frente. Recordou-se da sua coragem naquele instante. Acertara-lhe, tinha a certeza que sim, mas por alguma razão sobrevivera quando os seus amigos não. Gellie voltou a aparecer, desta vez no topo das escadas, mesmo na luz. Ela acocorou-se para abraçar os joelhos. Keen escorregou pelas escadas onde se sentara para conquistar alguma paz.
Atravessou o salão, necessitava de respirar o ar gélido daquela noite. Sentia-se estonteado ao ponto de não ter dado conta que o pai não estava só.
Mesmo quando fechava os olhos podia vê-los.
O seu corpo fervia de determinação. Dos presentes na estalagem ele foi o único que retaliou o ataque, mesmo que em vão, mesmo com os seus seis anos de idade ele tinha mais determinação do que qualquer um dos homens daquela aldeia. Dez anos depois não voltaram a ouvir falar do assassino nem de qualquer tipo de retaliação.
As tropas do rei espalharam-se pelo terreno lavrando qualquer homem ou mulher capaz de fazer frente à lei da capital. O medo que se instaurou fez algumas cidades desertarem para além de fronteiras.
À medida que os anos passaram Keen não foi capaz de esquecer, nem a aparição dos gémeos o possibilitava. O silêncio sobe o incidente tornou-se insuportável para si.
Ninguém falava do acontecido, era como se as crianças e o próprio Soren nunca tivessem existido. Se os pudessem ver como ele os via. Keen abriu os olhos e fechou as portadas com rapidez ao ver Esian estender-lhe a mão.
O seu pai castigava-o severamente sempre que mencionava o nome dos gémeos e ainda mais quando questionava o que acontecera verdadeiramente naquela noite, pois quando acordou a sua mente estava confusa entre a fantasia da história contada e a realidade do que acontecera. Como se fosse o mesmo. Quanto ao comportamento por parte do professor só havia uma explicação. A determinação executara os gémeos de forma a despertar o herói. No entanto, esse sentimento nunca foi absorvido pelo pai das crianças. Morlar não despertara nada para além da inércia.
– O que é que estás a fazer? – Keen pulou. O seu coração já não suportaria mais ansiedade naquela noite.
– Não consigo dormir.
– Vai para o teu quarto. O sono há-de voltar.
Keen fixou o homem sentado numa mesa, debruçado sobre um outro copo vazio.
A determinação não crescera naquele homem embriagado, pelo contrário, crescia numa criança, habitava dentro do seu peito, por anos, roía-lhe a alma. Por vezes era insuportável sequer pensar no assunto. Naquela noite, a raiva e o desejo de vingança que a dita determinação procurou deixar naquela aldeia, não alcançou o seu alvo, pois Keen absorveu-a para si. Todo o sentimento de revolta pela morte das crianças estava em si.
– Não tens treino amanhã? – Acenou pálido, o suor escorreu-lhe pelo rosto quando viu Gellie abraçar o homem sobre a mesa, a expressão do professor tornou-se pesarosa, como se não suportasse o toque da menina.
Havia tanta luz naquele compartimento como é que os podia imaginar com tanta força? Estaria a enlouquecer?
– Não me ouves, rapaz?
Desde aquele dia que se entregara aos treinos de espada, mesmo que o seu pai o proibisse, mesmo que ninguém se oferecesse para o ensinar, ele aprenderia sozinho. Quis partir no mesmo dia atrás do assassino, armado com uma espada de pau e força de vontade de um verdadeiro herói, era o que necessitava na altura para o derrubar. Fosse ele o rei inimigo, ou um demónio qualquer, daqueles que devoravam os guerreiros na fronteira e no bosque com cascalho e que deixavam penas sujas à sua passagem, enfrentaria qualquer um.
Recordava-se de ser a única criança de sete anos que atacara o assassino quando ninguém se moveu para os defender. A sua mente questionara-se. Como é que tinha sobrevivido? A resposta atormentava-o todas as noites de sonhos turbulentos. Sobrevivera por não ser um filho de um heroi? Por não causar qualquer dano ao seu inimigo? Por ser banal como todos os outros habitantes da aldeia que sobreviveram. Por não ser um herói?
– Keen! – o pai estava zangado. Apertou-lhe o rosto para o acordar do transe, a sua voz suou severa mas preocupada. – Estás gelado. Parece que viste um Estranho. Sentes-te bem? Pede à tua mãe para te
– Não é preciso acordá-la, foi só um pesadelo – desviou o olhar para não enfrentar o pai. − E eu já não sou um miúdo!
Levou dez anos para Keen convencer-se que era um homem feito e capaz da sua vingança. Esperara por aquele momento ano após ano. A hora tinha chegado.
A sua casa, a estalagem, já não tinha qualquer vestígio da noite da tragédia no entanto Keen ainda conseguia sentir o cheiro do sangue perto da lareira. Durante a noite, o local do crime estava ocupado por Maldit Morlar. Todas as noites o professor sentava-se em paz junto ao fogo com as suas preces como companhia. Normalmente quando a estalagem já estava vazia o pai fazia-lhe companhia.
Keen não compreendia como é que deixara passar aquele crime impune. Na verdade tinha uma teoria. Cobardia. Essa era a razão principal para justificar aquele acto de inércia, maior do que qualquer desejo em vingar os seus filhos assassinados.
Keen varreu o chão enquanto tentava ouvir a conversa, necessitava de prender o seu olhar no chão, numa tarefa qualquer que o fizesse não desejar ver os gémeos de volta do professor.
Soou o alerta. A vassoura caiu-lhe das mãos. O alarme da torre que ficava sobre o poço no centro da praça, o vigia do ramo mais alto esforçou-se por passar a mensagem com um segundo sopro e depois o silêncio. Estava na hora de ignorar os sentidos. Keen tapou os ouvidos e cerrou os olhos pois o pai não tivera tempo de fechar todas as janelas. Faziam-no em nome da sanidade enquanto as criaturas passavam pela cidade sem interesse ou como uma praga de gafanhotos. Não havia como o prever. Não sobraria nada. No entanto o professor nem reagiu.
A estalagem estremeceu, como se um bando de pássaros enlouquecidos voasse entre as ruas apertadas de contra as paredes. As janelas e as suas portadas sacudiram-se. O som tornou-se cada vez mais insuportável, como escamas e sacudidelas de cascavéis que lhes sugavam a sanidade. Keen encolheu-se. Haveria mais vidros para varrer em poucos segundos e lá fora, se tivesse coragem de espreitar, encontraria as penas sujas com sangue coalhado.
Ainda não era o homem que ambicionava transparecer. Nem tinha a força de um valoroso guerreiro. Achava-se corajoso e enfrentaria o primeiro que duvidasse dessa sua convicção, mas na verdade até o homem que lhe ensinara a lutar desistira de ver algum progresso na sua técnica.
A determinação, tal como o contador de história falara, não tinha razão para o perseguir. Não possuía nada precioso, assim pensava. Não tinha nada de valor que temesse perder. Não tinha falhas, embora os seus inimigos nem soubessem da sua existência. No entanto era a sua escolha vingar-se. Sentiu-se marcado pelo destino em realizar essa missão. Anos depois ainda mantinha a sua promessa, atingir um nível heróico de tal maneira que a determinação o guiasse até ao seu inimigo, só então ele poderia cumprir a sua promessa. Ao contador de histórias, persegui-lo-ia até ao infinito.
Silêncio. As criaturas tinham atravessado longe da estalagem.
– Termina as tuas tarefas e sobe, já é tarde. Não me pareces muito bem – o estalajadeiro passou a mão no seu rosto quando Keen olhou para Maldit, os gémeos desapareceram. Talvez o medo dos Estranhos o tivessem feito retomar à sua sanidade por instantes.
– Pensei que o tempo me pudesse fazer compreende-lo um pouco melhor mas
Keen viu a forma como o pai olhou para o professor, desde que ele chegara à vila com as crianças que nunca conseguira manter um diálogo apaziguador com ninguém mas com o seu pai, Maldit mantinha uma amizade estranha.
Chamavam-lhe o professor por ter construído uma escola com as suas próprias mãos, mas poucos eram os pais que permitiam que as suas crianças perdessem tempo com livros. Keen ainda chegou a visitar o edifício de madeira envernizada, divertia-se imenso, a parte do estudo não lhe dava tanto prazer quanto esfolar os joelhos em brincadeiras com os gémeos. Desde a morte dos amigos que a escola ficara abandonada. Maldit tornara-se mais intragável do que o habitual. No entanto o pai não o olhava com desprezo, mas compreensão.
Limpou-lhe a mesa e encheu de novo o jarro diante de si no mesmo instante em que lhe fez sinal para que subisse as escadas imediatamente. O homem estava gasto, agora não passava de uma mera sombra de uma vaga memória do que fora. Com certeza que Vangard se enganara quando lhe chacinou os filhos, aquele homem não era nada. Não podia ser um herói.
– Sobe! Vá lá...
– Porque é que ele fica ali a fixar o chão? Será que ele ainda consegue ver as manchas de sangue? Não posso aceitar, pai, é mórbido e
– Devias de estar agradecido. Ele paga o suficiente para manter o negócio. Depois do que aconteceu, ninguém ousou subir sequer as escadas da entrada, quanto mais entrar nesta casa. Ele salvou-nos. Com o tempo deixaram de pensar que esta casa estava amaldiçoada.
– Maldita por certo. Salvou-nos? – rosnou como o cão que costumava segui-lo no quintal − o homem fica ali todas as noites, para que deseja recordar se não pretende fazer nada sobre o assunto?
– Deixa-o. Se ele paira naquele canto, é porque não viu os seus filhos morrerem. É por isso. Agora vai! – empurrou o rapaz para as escadas. Estava na hora de fechar, no entanto, era o ouro daquele homem que mantinha o negócio de vento em popa era razão de sobra para não ser indelicado e de forma alguma afastariam o homem das suas memórias.
Keen sentiu-se irritado, qual a razão de tanta reverência? Olhou para trás e viu o pai de cabeça baixa diante do professor. Já nem ensinava, estava sempre bêbado. Se fosse um herói de verdade, mas aquele homem não era nada... a determinação enganara-se a seu respeito. Não havia qualquer memória de um feito grandioso da sua parte. Nem quando destruíram parte da escola na saída da vila.
– Pare com isso pai que o homem não merece – desceu as escadas mas a expressão do estalajadeiro petrificou-o.
– Já chega! Sai daqui imediatamente! Não voltarei a repeti-lo, sobe-me essas malditas escadas e não saias lá de cima até amanhecer ou nunca verás uma espada verdadeira na tua vida.
Keen correu pelas escadas, mas fê-lo contrariado.
– Está na hora de fechar novamente? Estás a fechar este antro cada vez mais cedo.
– Não há ninguém para atender há horas, deve estar quase a amanhecer. Hoje foi um mau dia, é só isso.
– Não sou um bom cliente? Não me serves?
– Irei sempre servi-lo, meu – Maldit silenciou-o com um olhar reprovador – Servi-lo-ei Morlar.
Keen não entendia o que diziam mas viu a forma como o pai se levantou à espera de uma reacção. O professor segurou o seu copo e moveu-o na direcção do pai.
– Pois então, eu sou um cliente. Estás a tentar fugir ao trabalho? Nunca te imaginei preguiçoso. Estás velho. Estamos todos... Ainda estou aqui, com o meu copo vazio, do que é que estás à espera? Traz um para ti também.
– Está a ficar tarde.
– Ainda bem... traz a garrafa, então. Ficará mais cedo em poucas horas, o dia vai nascer – agitou a mão num círculo de pensamento – e encherá os mais novos de sonhos e esperança. – O seu discurso era arrastado mais de desilusão do que da bebida. – Tens um rapaz cheio de raiva lá em cima. Não sei se tens sorte ou não.
– Ele não pretende ofendê-lo na verdade ele não sabe o que diz. Não lhe dê atenção, é um tolo.
– Ele é um rapaz. É tudo o que se pode dizer. O meu teria a sua idade por agora, talvez a minha pequena Gellie pudesse ser a sua mulher e juntos iriam gerir este lugar melhor do que tu.
Keen encolheu-se ao ouviu o nome da menina. Queria aproximar-se para ouvir melhor. Lembrou-se que podia sair pelas traseiras e contornar a estalagem até ouvir pela janela.
– Qual das dúvidas te persegue mais? Fala de uma vez.
O estalajadeiro fez um sinal para pedir permissão e sentou-se ao seu lado enchendo os copos, nesse instante Keen contornou as escadas com gotas de suor na testa, esforçava-se por não pisar o soalho em falso e fabricar ruídos denunciadores, ou o seu pai matá-lo-ia. Maldit viu-o quando bebeu de um trago só.
– Soren foi o último a morrer. Morreu na minha casa.
– Não fales desse assunto. Os heróis morreram, um a um. Foram caçados. Não te esqueças disso, mas não o menciones.
– Se morreram todos não sei, mas se ele crê que os matou, significa que houve homens que morreram no lugar dos verdadeiros, sabe-se lá quantos, quem sobreviveu ou não com outro nome. Keen sobreviveu, ele estava a dois passos e a espada nem lhe tocou. Esqueci-me da razão de tudo isto.
– Não há razão nenhuma. Não te preocupes com a tua família, tu não fazes parte desta história. Estavas fora da cidade na hora do massacre, o teu nome não consta dos homens caçados, ainda faltavam meses para receberes as honras de Evar como seu mais recente cavaleiro. Teoricamente tu não eras um de nós quando isto começou. Esquece este assunto e serve-me mais vinho.
– Há dez anos que Vangard caça os
– Depois de chacinar a maior parte da população, Vangard empalou os homens que me traíram, e iniciou a caça a sete homens e às suas famílias, aqueles que se intitularam heróis em nosso nome fizeram-no por iniciativa, por uma estupidez qualquer que nem eu entendo, talvez por fama e glória, hoje são cadáveres, como os meus filhos.
– Como é que deixámos Vangard ocupar o trono?
– Essa resposta é fácil! Fugimos! – bebeu de novo de uma só vez e voltou a cabeça para a janela. Keen chegara. – O Rei estava morto e um homem só não pode fazer a diferença.
– Ouvi-vos dizer o contrário, um dia. Éramos grandiosos, quase divinos, e deixou tudo para trás, como se estas mortes não tivessem qualquer valor. Não sei se conseguiria estar no seu lugar se Keen tivesse
– Achas-me um cobarde.
– Não, meu senhor.
– Não era uma pergunta.
– Não. – Keen espreitou pela janela, se o cão não estivesse a ganir ao seu ouvido tinha conseguido entender alguma coisa. Amaldiçoou-se, ouvia mais nas escadas do que naquele lugar. Ignorou a sujidade de penas pela passagem dos Estranhos, arrancou o pau da boca do cão e atirou-o para bem longe. – Tentei chamá-lo cobarde, mas não consigo. Maldito seja, Maldit. Nem lhe passa pela cabeça o que possa estar a acontecer na Capela Branca?
– Pensei que tínhamos decidido que a capital deixava de ser o nosso problema no instante em que escolhemos fugir – despejou o conteúdo do copo pela garganta como se fosse água.
Keen ouviu o pai rir. Era um acto estranho. Por outro lado pareceu ter algum efeito no professor que desistiu de levar aos lábios o copo cheio de novo.
– Maldito sejas, Maldit! Há quanto tempo não ouvia essa expressão? Era famosa entre os seus familiares e amigos, o trocadilho pela sua irreverência ajustava-se perfeitamente. Ficava no ouvido. Maldito sejas Maldit! − bateu com as mãos sobre a mesa, Keen já vira o pai zangado, mas o seu olhar naquela hora era maquiavélico. – Não o disse para lhe trazer o passado de volta à mente, no entanto a coincidência do momento ajustou-se igualmente, só o rei lhe desfazia essa teimosia.
Maldit moveu a cabeça na direcção da janela de novo, num movimento lânguido abriu o trinco e inspirou a aragem. Keen acocorou-se debaixo do parapeito e tapou a boca com as mãos, com a janela aberta daquela forma podia ouvir a conversa mas também poderia ser descoberto. O cão corria pateticamente feliz na sua direcção, o rapaz estava em estado de choque. Abanou a cabeça, mas quanto mais o fazia mais o cão corria de cauda a abanar.
– Eu sei a razão que o tornou nisto e para falar à vontade, senhor... faz-me a tripa enrolar-se como se não merecesse ser chamado de homem. Até na sombra, é mais lendário do que algum alguma vez poderia desejar.
– Não desejes, as mulheres patetas é que desejam, sonhos efeminados que nunca se realizam.
– Então isto faz-me uma miúda e muito feia.
– Não te preocupes, comprar-te-ei um vestido amanhã no mercado enquanto escolho entre as maçãs podres as que estão menos mal. Manda esse teu rapaz até mim, já o vi a treinar com Daile, aquele idiota não sabe o que faz, vai estragar o catraio – Maldit espreitou a cabeça de Keen debaixo da janela e sorriu antes de se afastar.
O rapaz abafou os latidos do cão e olhou para cima. Não o viram, estava a salvo, regressou ao quarto incapaz de adormecer, não ouvira absolutamente nada da conversa do pai com o professor, apesar de entender que se tratava de algum segredo antigo. No entanto, o último pedido do professo ainda ecoava na sua mente. Por que razão estava tão feliz?
– Não sei se ele quererá.
– Quererá! Aposto que sim!



– Porque é que a vida é tão enfadonha?
– Não entendo o seu tédio, majestade, depois de tudo o que conquistou? Os seus escravos não o agradam? – não havia expressão na sua face, era como falar com uma estátua, o homem executava as ordens e questionava o rei sem transparecer qualquer sentimento − Deseja que afaste este demónios nefastos do seu pátio? Estão a empestar o palácio. Apodrecem tudo por onde passam. Há penas e sangue por todo o lado e...
– Porque é que não há mais heróis? Não há nada heróico que passe os portões da frente e que me desafie? Porque é que os meus inimigos decidiram ignorar-me? Há quantos anos é que ele morreu? Depois dele não houve outro que me desafiasse, se voltasse atrás no tempo fazia-o de forma diferente.
− Deixava-o viver, majestade?
− Matava-o com as minhas próprias mãos. Talvez assim hoje cantassem o meu nome e não o seu. Evar, Evar, Evar, por um lado, Draquemar por outro. Julguei que ao matar os dois seria um herói para ambos. Continuam a falar de si como se fosse um deus na terra, mas o trono hoje é meu, é a mim que devem respeito. Onde é que eles estão? Os heróis? Estão a demorar...
– Eles tentaram, majestade, passar o portão, quero dizer... – o comandante fechou a janela de vidro, um luxo do Sul, tapou-a com a cortina de veludo pesada. Odiava aquelas criaturas de olhos esbranquiçados, faziam-no esquecer da sua humanidade.
– Sim? O que é que aconteceu?
– Chacinou-os, majestade.
– Ah. Sim, pois foi. Não sobrou nenhum. Eles comeram-nos, não foi?
– Amanhã será um dia melhor.
O comandante continuou de pé ao lado do trono. O salão estava vazio. Os criados faziam o possível para não se demorarem perto do rei. Temiam-no e ao seu mau humor. Por isso Droiel era o lugar mais sossegado que conhecia no reino. Uma torre em ruínas a norte da capital no meio da destruição.
– Tal como o dia anterior, e o que se seguirá. São todos iguais. As pessoas temem-me, pagam-me, obedecem-me. As crianças choram, gritam. A vida é tão monótona...
– Deseja que lhe traga uma mulher, majestade?
– Não me tragas mulher alguma... traz-me antes um rapaz.
O comandante desceu um degrau para o olhar, desejava ver o rosto do seu rei diante aquele pedido tão estranho.
– Disse um rapaz?
– Não o quero para o que estás a pensar! O seu nome é Keen – o rei sorriu – já faz alguns anos, esqueci-me de si, fiz-lhe uma promessa.
– Quem é esse rapaz?
– O responsável por esta cicatriz – mostrou a mão esquerda.
– Sobreviveu?
– Sobreviveu – o rei ergueu-se do trono para se espreguiçar enquanto caminhou até à mesa das taças recheadas de fruta.
– Estava muito misericordioso nesse dia. Foi um mau dia, não me diga?
– A sua morte, no momento, não me interessava, não era esse o meu objectivo na hora. Mas a sua vida sim. Antecipei este dia, em que não restasse um único adversário para me fazer frente, deixei-o viver – escolheu algumas uvas. – Soube que um dia estaria aqui, neste salão, aborrecido de morte sem nada para conquistar, ou vencer. Criei o meu próprio desafio, só isso.
– Tem a certeza que ainda vive? A pobreza espalhou-se até ao vasto azul, deixou as suas criaturas à solta, não sobrou nada ou quase nada, a fome devastou populações e a peste também.
– Sempre espalhei a morte, fiz homens implorar, gritar, chorar, morrer... mas este foi o primeiro que fiz viver. Como ele deve ter crescido, com a sua vida maravilhosa, com o meu nome impresso nos seus pesadelos. É quase como um filho.
– Estou a ver. Onde deseja que vá caçar esse rapaz?
– Na Floresta da Coroas Quebradas – voltou a sorrir – ou deverei ir buscá-lo pessoalmente?
– Não, majestade. Fique. Morreria de tédio pela viagem que me espera, não há qualquer perigo nessa região. Além do mais com a minha ausência todos os traidores existentes tentarão contra a sua vida. Ficará entretido, tenho a certeza – desenhou uma leve vénia.
– Foi uma boa ideia, não foi, Venian?
– Sim, foi majestade. Regressarei em pouco tempo.
O comandante abandonou o salão e o seu instinto fê-lo suspender a respiração. A velha tacteava as paredes do corredor até ficar a um passo de distância de si. Farejou-o. Venian não se moveu, nem quando ela pousou as mãos no seu peito e as deslizou pelo ventre para lhe sentir a masculinidade. Se não fosse cega saberia que a sua expressão continuava imutável, no entanto sentiu-lhe o asco que lhe transbordava pela sua existência e riu.
– Desejas a companhia dos meus demónios para a tua viagem?
– De modo algum – caminhou lentamente pelo corredor depois de afastar com alguma resistência as mãos do seu corpo.

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